FOLHAPRESS - Na primeira cena de "Noite Exterior", quando militantes das Brigadas Vermelhas ocupam uma rua, Marco Bellocchio exibe, colado no muro em frente a uma loja de armas, um cartaz de "Almas Perdidas", o melodrama de Dino Risi. Não é um acaso, nem homenagem ou algo assim. Afinal, é da alma perdida da Itália que Bellocchio tem se ocupado durante boa parte das últimas décadas.

Foi em 2003 que começou esta série histórica, com "Bom Dia, Noite", título sintomático do filme em que reconstituía, de dentro, a descida de Aldo Moro ao inferno das Brigadas Vermelhas, levando consigo a Democracia Cristã -a DC- e no fim das contas o próprio Partido Comunista -o PCI-, isto é, a duas grandes instituições da política italiana no pós-guerra. Desta vez, Bellocchio vai buscar seu título numa expressão do cinema. Noite exterior é como se designam as tomadas noturnas feitas fora de estúdio ou locação.

É ao trágico fim de Moro -o estadista, a não confundir com essa mistura de jurista meia-tigela com político oportunista que temos por aqui-, o homem de equilíbrio da complexa Itália que Bellocchio retorna, desta vez numa série feita para a TV italiana, para observar a mesma situação, mas agora de fora, vendo como aqueles que estão no entorno vivem essa crise -ministros de Estado, dirigentes partidários, a família, o papa Paulo 6º e mesmo as Brigadas.

Com seis capítulos para desenvolver suas ideias, dedicou cada capítulo a um protagonista da trama. Francesco Cossiga, então ministro da Justiça e afilhado político de Moro, que teria se pautado por um prudente e ao mesmo tempo desesperado imobilismo; o papa Paulo 6º, amigo pessoal de Moro, que se envolveu pessoalmente nas negociações com as BV; a família do sequestrado; as próprias Brigadas. Em suma, trata-se de passar um pente fino entre os que estavam do lado de fora da ação de sequestro propriamente dita -no exterior.

A cada novo protagonista, o filme volta atrás para que os atos de cada um sejam mais bem explicados. Esta é uma característica do cinema recente de Bellocchio, tratar episódios complexos com a maior clareza possível e deixando o seu ponto de vista à mostra sem maiores ambiguidades.

Entre os dois filmes que tratam da morte de Moro, outras situações críticas foram objeto de sua reflexão, todas elas tocando o destino da Itália no século 20. Em "Vincere" (2009) ocupou-se da trajetória de Mussolini, de sua juventude como soldado na Primeira Guerra e militante socialista até o sucesso como líder autoritário do fascismo. Em 2019 foi o grande combate à máfia que buscou retratar em "O Traidor".

Sobrou alguma coisa? Talvez um dia Bellocchio venha a se ocupar da televisão privada. Afinal, de lá saíram a insuperável cafonice da TV italiana -no país do Renascimento- e Silvio Berlusconi, ex-primeiro-ministro que conduziu o país à direita e abriu caminho, com entusiasmo, para que a extrema-direita chegasse ao poder no país.

É indigesto, para dizer o mínimo, tratar de Berlusconi, que ainda está vivo e talvez seja apenas um personagem menor, apenas o corolário de uma tragédia cujo início Bellocchio ainda procura localizar com clareza.

O certo é que em "Noite Exterior" a DC é a grande vilã. A DC sem Aldo Moro, entenda-se, e com Giulio Andreotti à frente. Em "O Traidor", Bellocchio reservou algum espaço no filme para a acusação de ligações desse político com a máfia. Talvez não a única.

Certamente houve vilões secundários, como o consultor antissequestros que vem dos EUA e o próprio PCI, que Moro introduziu na coalização maioritária, mas que na hora do sequestro tirou o corpo fora, talvez por interferência de Moscou.

Não será por acaso que uma cena rápida ficará na memória dos espectadores. O momento em que, num ônibus, uma mulher faz a defesa aberta de Mussolini. Estávamos em 1978, o fascismo parecia enterrado, mas essa intervenção dá a entender que as ideias autoritárias viviam subterraneamente na memória de muitos italianos.

Outra cena, bem mais detida, fala do caráter demencial das BV, quando um membro da organização diz a sua companheira que sua causa é perdida. Ela fica primeiro desconcertada e logo a seguir revoltada. Afinal, abandonara até a filha para seguir o grupo. O companheiro esclarece, no entanto, que a vitória, a criação de um Estado operário, seria impossível, mas que eles morreriam e seriam heróis de lutas futuras.

Justamente por abordar os vários protagonistas dessa trama com cuidado, mas de maneira implacável, Bellocchio permite-se introduzir uma profunda ambiguidade ao tratar da morte do estadista propriamente dita. No início do filme, vemos o estado-maior da DC entrar num hospital e visitar Aldo Moro, ainda vivo. No final, um telefonema das BV informa que Moro estaria num carro, em tal lugar, mas não deixa claro se ele estaria vivo ou morto. A informação chega à mesa do imóvel Cossiga. Só mais tarde providencia-se a busca do corpo. Uma ambulância o recolhe, como se ainda estivesse vivo.

A realidade foi um pouco mais atroz para Moro. Ele foi morto a tiros pelas BV, mas ainda teria vivido uma longa agonia. Bellocchio enfatiza a inação, que sugere criminosa, da DC.

Entre outras coisas, essa longa agonia propicia o único momento menos feliz da série -a metáfora mão pesada de Moro revivendo a via crucis de Cristo. Embora sugerida pelo próprio Moro numa das cartas à família, embora referendada pelo próprio Vaticano, a ideia vale mais sugerida do que concretizada, como fez Bellocchio.

Por fim, Bellocchio é um cineasta da família e da loucura. Desde seu primeiro filme, "De Punhos Cerrados", de 1965, em que o incesto era tema central, isso acontece. Nos filmes do século 21 isso se repete. Em "Vincere", Mussolini abandona a mulher e seu filho pelo poder, a família Brigadas Vermelhas fala por si só. Nas mãos de Bellocchio é uma espécie de asilo de psicopatas disfarçado de facção política; a DC é uma família disfuncional; a família Moro é, neste filme, a única reagir de maneira conveniente e intransigente aos acontecimentos.

Núcleo de maior proximidade entre os homens, seja metafórica ou não, a família expressa e revele o alto e o baixo, o melhor e o pior, mas com toda certeza o que há de mais profundo em cada ser humano. Ela é quem baliza, quase sempre, a obra notável de Marco Bellocchio.


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