FOLHAPRESS - Adolf Hitler defeca em frente a uma multidão agitada, enquanto Winston Churchill, com um longo capote, usa discretamente o urinol. Enquanto isso, outro Churchill, com o típico salacot de explorador do Terceiro Mundo, brada as vitórias militares na África. Stálin e Mussolini, num outro canto, disputam para saber quem é o mais socialista.
Alexander Sokurov brinda os espectadores com cenas irreais como essas em "Conto de Fadas", longa em exibição na Mostra de Cinema de São Paulo -sua primeira produção desde "Francofonia: Louvre Sob Ocupação", de 2015.
Recriar e observar a história com "H" maiúsculo pelo viés subjetivo da alma sempre foi uma das obsessões do diretor russo, mais conhecido pelo tour de force de "A Arca Russa", de 20 anos atrás, que impressionou pelo longo plano-sequência atravessando 30 e tantas salas do Hermitage, em São Petesburgo.
O fôlego para tratar a história do mundo (como em "Taurus", "Moloch" e "O Sol") e das artes ("Fausto", o próprio "Francofonia") da perspectiva em que mortos e vivos são parentes (como a ficção e o documentário), se repete aqui nesse "Conto de Fadas", cuja ironia se percebe logo que mergulhamos no purgatório cinza por onde vagam os líderes autoritários do último século -reanimados por meio das deepfakes, vídeos manipulados a partir de registros antigos.
É algo de escala inédita para um autor que costuma recusar as seduções da pós-produção. Se o cinema conseguiu salvar as pessoas da morte pelo movimento e pelo som, os deepfakes -que povoam as guerras eleitorais e seduzem Hollywood- vão além ao brincar com a ilusão de vida e corrompem o destino das imagens.
Habilmente, Sokurov leva esse jogo político para as telonas e reverte a sujeira das fake news contra fantasmas que seguem apodrecendo no imaginário ocidental mesmo 60 anos depois.
Esse estranha beleza da manipulação conduz a encenação por entre gravuras de Gustave Doré, árvores secas, soldados espalhados pelo chão, além de um enorme coliseu onde os líderes vão se alimentar dos anseios da massa -representada por uma névoa tenebrosa digna dos experimentos em película de Bill Morrison ou Stan Brakhage.
Sokurov, porém, parece se perder no mar revolto de referências que, no caso de "A Arca Russa", era justificada pelo narrador descolado de seu tempo. Aqui somos bombardeados com três ou quatro repetições da "selva escura" de Dante, conversas intermináveis em várias línguas sobre Stálin ser um judeu caucasiano; piadas sobre a mania de grandeza dos alemães, ou o catolicismo dos italianos versus a pompa dos britânicos, ou sobre como Stálin sepultou Lênin et cetera.
Em entrevistas, Sokurov garante que essa bricolagem partiu de documentos e depoimentos desses personagens -o que de fato desloca os líderes da aura de poder e os revela, assim como é hoje nas redes sociais, pelo lado humano mais podre.
Daí as dúvidas típicas do espiritualismo de Sokurov se repetem, como em frente ao horror cotidiano, mas em que medida é o filme que ilumina nossos tempos, ou as ideias atuais quem obscurecem o filme? Que quer Sokurov?
Mesmo as piadas metafísicas parecem rasteiras, querendo exibir a hipocrisia dos eleitos -vide que só um dos clones de Churchill consegue ser acolhido no paraíso, enquanto o próprio Cristo estaria condenado a permanecer nessa sala de espera kafkiana. "Nós adoramos chapéus bonitos por aqui", justifica o Deus do filme, digno de Monty Python.
O espectador sairia mais disposto desses 80 minutos se a verborragia apostasse mais no espetáculo mudo de horror que Sokurov conduz em algumas passagens. Da forma como concebeu, os encantos da técnica inovadora se dissolvem aos poucos, como um sonho antigo, junto com as lições que envolvem qualquer bom conto de fadas.
CONTO DE FADAS
Avaliação Regular
Quando Em cartaz na Mostra de SP: Cinesesc, qua. (2), às 15h30
Classificação Livre
Produção Bélgica, Rússia, 2022
Direção Alexander Sokurov
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