RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - No dia 26 de setembro, Paulo Henriques Britto abriu a porta de seu apartamento, no Alto Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, às 15h em ponto. O poeta logo sumiu para dentro dos cômodos da casa, deixando a sala vazia. Através da janela, as nuvens se abaixavam, descendo, uma a uma, a portentosa pedra que envolve o bairro.

Aos 70 anos, Britto acaba de lançar seu nono livro de poemas, "Fim de Verão", levando a cabo a meditação sobre a morte, presente em "Formas do Nada", de 2012, e "Nenhum Mistério", de 2018. "A poesia é feita de palavras, não de ideias", diz ele, apontando a dificuldade inicial de seu ofício.

Um dos pilares da poesia contemporânea brasileira, Britto se divide entre a tradução literária e as oficinas que ministra para os alunos da faculdade de Letras da PUC-Rio, a poucos metros dali. "Eu não vou tornar ninguém poeta", ele afirma. "Alguns têm talento e viram autores, mas eu ensino as pessoas a lerem poesia, o que a maioria não sabe fazer."

Decerto, Britto criou uma escola literária, formando também uma dívida ao leitorado brasileiro. Ele traduziu algumas das principais obras da literatura em língua inglesa dos últimos dois séculos. "O Som e a Fúria", de William Faulkner, "O Quarto de Giovanni", de James Baldwin, ou então obras de Lord Byron, Elizabeth Bishop e Wallace Stevens.

"A tradução é uma libertação, você escrever em português é uma maneira de sua obra ficar restrita", diz. "Mas nossa situação está longe de ser a pior do mundo, o poeta que escreve em esloveno está ferrado."

Em seu novo livro, Britto exibe o domínio das formas fixas e a consciência de que um verso só chega ao fim depois de muito trabalho. Substitui, assim, a pretensa inspiração poética pelo deslumbramento com a língua. Segundo ele, um poema nasce do acaso, quase sempre de uma palavra que, de repente, assalta seus pensamentos. Por isso, trata com rigor métrica e rimas, as toantes, bem ao modo de João Cabral de Melo Neto.

Não por acaso, um dos principais temas de "Fim de Verão" é o estudo da arte poética, isto é, poemas que falam sobre poesia. Na suíte "Ao Leitor", o ato da escrita quer descobrir a língua se fazendo, quando não a própria língua. "Quem sempre falará/ no poema é uma voz eviscerada,/ uma voz, na verdade, de ninguém,/ ou -se não for caso de quem- de nada", diz o terceiro poema.

O som de uma voz sem vísceras sugere que a composição poética já não pertence à elocução do eu lírico. Está desenhada na página em branco, como se lá sempre tivesse existido. Ao mesmo tempo, o autor deseja revelar uma canção universal, numa busca prenunciada nos dois livros anteriores. (A palavra "nada" que encerra o poema aparece 90 vezes em "Nenhum Mistério".)

Esbarrando no vazio, sua arte poética se manifesta na segunda estrofe, quando o eu lírico admite não estar ali por inteiro, depois de tantos cortes feitos -e poucos acréscimos- "pra caber na pauta estreita" de todo poema. Britto exaure a reflexão sobre a linguagem em infinitas combinações.

"É a velha história de sempre, com este ou aquele acréscimo: você fingindo que entende,/ sem entender um centésimo", diz, irônico, o décimo poema. Como num jogo de armar, os poemas se repetem, na medida em que amealham um punhado de palavras numa tentativa de desvendar a maquinação da obra literária.

Suas inquietações como poeta-tradutor aparecem em outra sequência, "Sem Fio". "O poema à língua se aferra,/ e dela só sai se arrancado./ Sair, sai; mas em pandarecos:/ não é mais o mesmo artefato". Nesse sentido, alcançamos a abstração em duas dimensões.

Primeiro, a língua se eleva como estrutura anterior à unidade poética. Nessa espécie de idealismo, a composição resultante já incorre numa fatalidade. Depois, há a abstração temática, ela mesma explícita na investigação empreendida pelo autor. Voltando do escritório, Britto se sentou numa poltrona e apoiou os pés num banquinho, em total descontração.

Ao lado, estava o piano, onde pratica o repertório erudito que tanto gosta. Em "Fim de Verão", são várias as menções a compositores, como Edvard Grieg ou Ludwig van Beethoven. Mas não só pela ironia se dá a recusa da fala empolada. A voz do artista também é dissonante, porque vem de um homem simples, sem afetações ou vaidades.

O comportamento se estende à obra, que se assume como uma "poesia chã". Sua matéria-prima é retirada de um dia "igual a qualquer outro,/ um dia besta, esvaziado e amorfo", tal como preconizado em "Bálsamo". Britto se diz surpreso por ter concluído um livro em quatro anos. Em geral, ele demora quase uma década para lançar uma nova obra, demora que ainda é maior para livros de contos, como "O Castiçal Florentino", de 2021, e "Paraísos Artificiais", de 2005.

Em "Fim de Verão", a influência de Emily Dickinson é ainda mais clara, ganhando a epígrafe e um conjunto de poemas, "Trezes Traduções e Treze Variações Sobre Um Poema de Emily Dickinson". Sob o aspecto formal, Britto quebra a forma canônica das orações com os travessões explicativos, assim como fazia a poeta americana. A flutuação entre o português e o inglês se estende em "Quatro Autotraduções", brincadeira feita em muitos dos seus livros.

Cresce, por fim, o tom melancólico do livro, com a proximidade da morte e a clausura que enfrentou nos anos pandêmicos. "Entrei num buraco feio, perdi o contato com todo mundo", ele conta. "Comecei a escrever loucamente, num ritmo alucinante, desde jovem não tinha um ritmo tão intenso."

O primeiro soneto da suíte "Fim de Verão" resume bem o estado de espírito, emendando os quartetos aos tercetos em única frase. A luz da tarde se estende na repetição da preposição "de". "Luz de final de tarde de um verão/ que não quer acabar, como uma vida/ a alongar-se além de toda razão/ de viver, como rua, ou avenida."

FIM DE VERÃO

Preço R$ 59,90 (96 págs.); R$ 34,90

Autor Paulo Henriques Britto

Editora Companhia das Letras


Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!