RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Em meio aos sambas de Agepê, Bezerra da Silva, Leci Brandão e ao batuque do terreiro de umbanda de sua avó, sons que foram a trilha sonora de sua infância na Cidade de Deus, Deize Tigrona guarda na memória a voz de Jovelina Pérola Negra. "Ai, que vontade que eu tinha de ter um carango joinha/ E morar na Vieira Souto ou em Copacabana." Reconheceu ali a possibilidade de desejar algo além do horizonte curto que a vida oferece --mais curto para uns do que para outros, ela não demorou a perceber.
Mais de três décadas depois e uma trajetória que inclui trabalhos como empregada doméstica e gari, residência artística no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, depressão e shows na Europa, é esse desejo que move "Foi Eu que Fiz", pela Batekoo Records, álbum recém-lançado por ela, mais de dez anos depois de seu disco anterior. Na obra, ela avança para horizontes além do funk que a formou, abraçando o trap e outras linguagens eletrônicas, ao lado de produtores como JLZ, Teto Preto, DJ Chernobyl e Badsista.
O desejo que refletia as palavras de Jovelina bateu cedo. "De 13 para 14 anos cismei que queria ser artista. Comecei a procurar curso de teatro, paguei um mês de Tablado [tradicional escola de teatro carioca]. Foi meu salário quase todo, não consegui continuar." No curso para modelos Elite, avançou menos ainda. "Não me deixaram nem pagar, disseram que meu perfil não era o padrão deles."
Nessa época, ela já trabalhava como empregada em São Conrado, num condomínio que tinha entre seus moradores Luciano Huck, Preta Gil e Simone. Em sua condição de trabalhadora doméstica, não tinha oportunidade de se aproximar dos artistas nem para pedir um autógrafo, quanto mais buscar algum tipo de ajuda para uma possível carreira artística.
"Uma vez cantei no programa do Huck e disse para ele que tinha tentado um autógrafo dele nessa época, mas não consegui." Fora do expediente, ela ia para a frente da sede da TV Globo tentar um posto de figurante.
Mais do que ver de perto os artistas, o trabalho como empregada doméstica ampliou suas fronteiras musicais. "As madames ouviam Caetano Veloso, Rita Lee, Chico Buarque, Lulu Santos. Isso me deu uma diversidade, porque nessa época eu estava já no funk."
A "música ouvida pelas madames", em vez de um estranhamento, causou nela uma sensação de pertencimento. "A gente que mora na comunidade, quando vai para outros ares, acha que aquele espaço não é para a gente. Mas ouvir aquelas músicas me dava uma sensação de paz, de paciência, de buscar entender a poesia. E ver que o samba tinha outra origem e outra expressão, mais gritada pra poder chegar no asfalto, mas também era poesia."
"Quando Lulu canta uma traição que rolou, 'meu bem, meu bem/ será que você não vê/ não houve nada', ou Rita Lee fala de 'tomar banho de sol', você vê que todo mundo quer algo. É tudo o mesmo contexto. A música é livre."
Além de funk, samba, MPB, Deize tinha o rap por perto --literalmente. "MV Bill era meu vizinho de porta. Cheguei a começar a gravar rap, mas não deu certo", diz a cantora, que sempre teve paixão pela escrita, fosse de letras ou poemas.
Outros ingredientes cozinhavam no caldeirão de sua inspiração. "Sempre gostei de cinema. Gostava de assistir aos filmes proibidos, com Lucélia Santos e tal, ficava acordada até tarde, esperando", diz e sorri, referindo-se ao cinema nacional das décadas de 1970 e 1980 recheado de cenas de sexo.
Foi na TV que ela achou inspiração para seu primeiro hit dos bailes da Cidade de Deus. "A série 'Hilda Furacão' pra mim foi o épico do bagulho. Aquela mulher que na adolescência cisma de não casar, foge pro prostíbulo e se torna a que manda."
Escreveu os versos: "Não somos 'Hilda Furacão', mas seu macho vamos comer/ Esse é o Bonde do Fervo lá da Praça do Apê", localizando a música na geografia da Cidade de Deus e gerando uma resposta imediata da comunidade.
Deize é uma das pioneiras entre as funkeiras que cantam o sexo a partir da perspectiva do desejo feminino, uma linhagem que inclui nomes como Tati Quebra Barraco e MC Carol. Ela ganhou especial destaque quando teve sua "Injeção" sampleada pelo americano Diplo no hit "Bucky Done Gun", da cantora britânica de origem cingalesa M.I.A., em 2005. A atenção internacional a levou aos palcos da Europa --como o do Rock in Rio Lisboa-- e a gravar com o Buraka Som Sistema.
Em "Foi Eu que Fiz", Deize avança um tanto no terreno do desejo feminino. O disco foi lançado no dia da visibilidade bissexual, em 23 de setembro. A faixa de abertura, "Sururu das Meninas", deixa evidente que não foi por acaso. "Suruba das meninas/ Macho tem medo/ (...) Hoje é só as sapatão", canta ela.
"Tem muita artista sapatão que não escreve abertamente sobre isso. Fiz algo bem escrachado e exibido mesmo. Tem que ter alguém botando a cara para que outras mulheres venham com essa mesma liberdade", diz Deize. "Bondage", por outro lado, dá mais um passo numa direção --com chicotes e itens do gênero-- que ela já havia anunciado em "Sadomasoquista", single lançado há um ano e que se tornou hit do TikTok.
"Nesse disco, pensei nesses meninos que cantam funk e trap hoje, que põem as meninas como submissas. Eu e minha filha conversamos bastante sobre isso. Fico irritada. Procuro fazer diferente, dizer que não tô interessada nisso, que outras meninas desejam outra coisa", explica a funkeira.
Entre "Injeção" e "Foi Eu que Fiz", porém, o caminho não foi ascendente. Em 2009, numa temporada de quase três meses na Europa, ela percebeu que havia algo errado com sua saúde. "Minha regra desceu duas vezes num mês, estava me sentindo estranha."
De volta ao Brasil, chegou a falar disso numa entrevista. "Disse que estava sentindo o punho gelado, uma parada na testa que parecia uma nuvem, mas que não sabia o que era". Veio a insônia, "uns pesadelos acordada de que eu estava morta". Foi em vários médicos e todos apontavam o mesmo diagnóstico: depressão. "Mas como? Isso não é coisa de rico?", reagiu.
A inação tomou conta de sua rotina. Não tinha energia para levantar da cama, menos ainda para fazer shows. Um dia, ao ver os filhos rindo de um desenho animado na TV, sentou com eles e decidiu que precisava parar, relaxar, pensar, se cuidar. Deu uma pausa na música, retomou os estudos para completar o ensino médio, trabalhou como empregada doméstica e, entre 2014 e 2015, fez concurso para gari da Comlurb. Passou entre os primeiros, tanto na prova física como na prova escrita.
"Quando eu botei aquela roupa, senti o peso da vassoura, que é duas vezes maior do que as de casa. No carnaval de 2015, varria as ruas do lado do Copacabana Palace. As pessoas da zona sul dos blocos, os formadores de opinião que curtiam funk, me reconheciam e perguntavam o que eu estava fazendo ali. Mas eu precisava descansar", lembra Deize, que segue trabalhando na Comlurb, conciliando o emprego com a carreira artística.
Nesse período, chegou a lançar a música "Prostituto", em 2012, mesmo ano em que foi lançado o filme de "Bete & Deise". A obra da artista plástica holandesa Wendelien van Oldenborgh, exibida em museus da Europa, registra o encontro de Deize com a atriz e ativista Bete Mendes.
Em 2019, já melhor e buscando retomar a carreira, Deize se aproximou da Batekoo Records e começou a planejar o disco que seria "Foi Eu que Fiz". A pandemia, porém, atrasou os planos. A cantora, que estava se separando, decidiu passar uma temporada no Recife. Ficou seis meses por lá.
Na volta, Deize iniciou numa residência artística no MAM do Rio, onde escreveu sobre o período passado no Nordeste. "Vou lançar isso como um livro, 'O Ano Sadomasoquista', que fala da minha ida para o Nordeste, o lançamento de 'Sadomasoquista', a residência no MAM e o disco."
No ano passado, fez sua estreia como artista plástica expondo na coletiva "Vazar o Invisível", no Studio OM.art, localizado no bairro nobre carioca do Jardim Botânico. Sua instalação "Livro de Pau" consistia em uma narrativa escrita em nove portas, como se fossem páginas.
"O Ano Sadomasoquista" é parte da autobiografia que ela vem redigindo, contando desde a época de criança na Cidade de Deus. "Foi uma infância muito complexa, pesada. Cheguei a morar na rua, ficava vendo terrenos que eu poderia invadir."
Deize segue morando na Cidade de Deus. "Quando eu trabalhava de empregada doméstica, sonhava em ter muitos aluguéis na comunidade pra não precisar trabalhar mais. Mas se tivesse tido outro diálogo com minha mãe, ia almejar ser vizinha da madame em vez de ter um monte de casa na comunidade. Mas a zona sul pra mim sempre foi entendida como porta dos fundos e elevador de serviço".
Ao mesmo tempo em que afirma uma trajetória na direção oposta ao destino esperado de uma mulher preta, pobre, da periferia, Deize recusa fantasias de poder vazio. Numa das faixas de seu novo disco, "A Mãe Tá On", ela renega o apelido de rainha do funk. "Meu vulgo não é rainha/ Rainha é o caralho, foda-se a monarquia."
"Às vezes te chamam de rainha mas não te convidam pra trabalhar. E rainha tem súdito, essa relação pra mim não rola. Não sou rainha, sou mulher", explica.
A palavra "mulher", na boca de Deize, se mostra carregada de vontade, de vontades. "É o querer ser. É o querer mudar", diz, ecoando o canto de Jovelina cravado nos seus ouvidos de menina.
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