PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - A escritora cubana Teresa Cárdenas, 52, começou a escrever para o público infantojuvenil porque, quando criança, nunca se via retratada nos livros. Nas obras que pegava na biblioteca ou recebia na escola, os pretos só apareciam, de maneira secundária, quando se falava do período colonial em Cuba e da escravidão. Não havia livros em que os protagonistas eram jovens negros.

Cárdenas alcançou reconhecimento mundial e conquistou importantes prêmios com livros como "Cartas para Minha Mãe", em que uma menina negra órfã precisa viver com a tia e primas que não gostam dela, é vítima de racismo, mas se fortalece ao escrever para a mãe morta e fazer novos amigos.

Agora, Cárdenas homenageia os Awon Baba, expressão em iorubá que significa os ancestrais, os que se foram, no livro de mesmo nome que a editora Pallas lança esta semana no Brasil. A obra é protagonizada por crianças, adultos e idosos que vivem durante o período de escravidão e resgata as tradições dos ancestrais. São contos doloridos, com relatos de abuso sexual, maus tratos, violência.

Mesmo assim, Teresa insiste que sejam lidos por jovens, que não deveriam ser poupados dos "temas difíceis". "Cuba é um país profundamente miscigenado, onde a presença africana ajudou a formar a identidade nacional. Não entendia como era possível que apenas pessoas brancas aparecessem em livros, revistas e meios audiovisuais", disse à Folha de S.Paulo Cárdenas, que participa de mesa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, que se realiza entre os dias 23 e 27 de novembro.

"É uma batalha que ainda estou travando. Meu objetivo é que outras crianças negras não experimentem a exclusão que senti na minha infância."

PERGUNTA - "Awon Baba" fala sobre pessoas escravizadas e descreve os abusos que essas pessoas sofreram e como conseguiram continuar vivendo. É um livro para crianças e jovens?

TERESA CÁRDENAS - "Awon Baba" é um livro que reúne doze contos que abordam o tema da escravidão na Cuba do século 18. Poderia muito bem ser lido como um conjunto de relatos biográficos, relatos cruéis de uma realidade que meus ancestrais sofreram e à qual conseguiram sobreviver, apesar de tudo. Eu queria prestar uma homenagem o mais honesta possível às suas vidas, desde o título do livro até o último conto. O termo em iorubá Awon Baba significa ancestrais, os pais, aqueles que não estão mais aqui. Na essência do povo africano está o respeito pelo legado recebido dos mais velhos, tanto nos conhecimentos, como na espiritualidade. Este livro presta homenagem a essa herança, àquela força que lhes permitiu sobreviver e que ainda permanece em cada um de nós que pertencemos ao povo afrodescendente na diáspora. Mas a leitura desses contos é difícil, comove, toca profundamente dentro de nós. Recomendo que seja lido por adolescentes e jovens.

Por que é importante que crianças e jovens leiam obras sobre temas difíceis?

T. C. - Há muito mais vidas de crianças e jovens trespassadas, neste exato momento, por violência e horror do que livros que abordam esses temas fortes. É importante que esses livros sejam publicados e lidos, porque são armas de aprendizagem, ferramentas para a defesa da vida e do futuro. Quando alguém se depara com uma história em que há uma pessoa passando por dificuldades semelhantes às que ela passa, ela não se sente sozinha e terá esperança. Em muitas ocasiões, tive o privilégio de tocar vidas com minhas histórias. Com a minha escrita, consigo me solidarizar com os jovens que podem estar do outro lado do mundo, vivendo uma experiência complexa, que ninguém, nem mesmo sua própria família, imagina. É por isso que não descarto nenhum tema, por mais difícil que seja abordá-lo.

Por que a senhora começou a escrever sobre a cultura afrocubana?

T. C. - Toda a minha memória, a minha identidade, está enraizada nos meus antepassados africanos. Desde criança, acompanhava minha mãe a festas dedicadas aos orixás, ouvia aquelas músicas em iorubá que eu não entendia, mas me emocionavam. Então eu cresci e percebi, quando comecei a ler e estudar, que todos aqueles rostos semelhantes aos meus não estavam em lugar nenhum. Eles só apareciam, muito brevemente, quando os livros de história da escola tratavam do período colonial em Cuba e do tráfico de pessoas escravizadas. Pouquíssimos autores de literatura infantojuvenil escreviam histórias em que personagens negros apareciam. Eu me propus a mudar isso, eu queria combater essa ausência inexplicável. Cuba é um país profundamente miscigenado, onde a presença africana ajudou a formar a identidade nacional. Não entendia como era possível que apenas pessoas brancas aparecessem em livros, revistas e meios audiovisuais. É uma batalha que ainda estou travando. Meu objetivo é que outras crianças negras não experimentem a exclusão que senti na minha infância.

Quais foram as inspirações para escrever "Awon Baba - Histórias que Escutava de seus Familiares", fantasia?

T. C. - Embora minha literatura aborde temas difíceis com bastante frequência, eu tendo a misturar fatos históricos com seres mitológicos ou personagens inspirados em alguém próximo. Escrevo sobre uma sereia que quebra em dois um navio de tráfico de escravizados, de uma coruja personificando a morte; de um cavalo invisível ou de um idoso escravizado fugindo para o mato, ou de uma menina que é abusada sexualmente ou de alguém que não sabe seu próprio nome. Quando escrevo, não tenho fronteiras. Sou totalmente livre. Os ancestrais falam através de "Awon Baba" e dos outros livros que escrevi, eles me contam sobre suas vidas e relatam como sobreviveram ao horror da escravidão. Todas essas experiências ao longo dos séculos se juntam às minhas, às da minha família e e de meus amigos. É uma retroalimentação constante, um fluxo de águas que se entrelaçam e se fortalecem.

O que têm em comum os personagens de "Awon Baba"?

T. C. - Todos eles viveram na mesma época e tiveram a tenacidade para subsistir. Eles não desistiram, e graças a isso eu estou aqui.

O que mudou para seus três filhos, agora que já se veem alguns personagens negros protagonistas em livros?

T. C. - Acho que mudou tudo. Agora é mais comum encontrar rostos diferentes em livros infantis e juvenis, mais leitores podem se sentir representados e isso é muito importante. Não só para os meus filhos, mas também para aqueles que nunca viram um rosto como o deles nos livros. A literatura deve ser um mundo em que todos nós estamos, um mundo de inclusão onde todos nós temos uma voz, uma história para compartilhar.

Que cicatrizes Cuba e Brasil compartilham?

T. C. - Compartilhamos experiências terríveis em torno do racismo e das posições discriminatórias de algumas pessoas. Sendo ambos os países tão profundamente miscigenados em sua identidade, cultura e formas de apreciar e aproveitar a vida, é incompreensível que tais ideias retrógradas e repugnantes persistam.

Se em trinta anos, a humanidade viajou para o espaço e desenvolveu a tecnologia aplicada às comunicações além do que jamais podíamos imaginar, como é possível que nos 130 anos que se passaram desde a abolição da escravatura no Brasil e um pouco antes em Cuba ainda existam seres humanos que menosprezam, assassinam e humilham os outros apenas por causa de sua raça?

É inaceitável que alguns cometam atos de violência por causa de gênero, orientação sexual, religião, classe social.

É uma história de horror que ninguém deveria viver. José Martí, o herói nacional de Cuba, disse: "Tenho fé no aperfeiçoamento humano no futuro, na utilidade da virtude". Mas também tenho fé que as pessoas podem fazer melhor. Como diz um antigo provérbio iorubá: A ki nfari leyin olori, "Você não pode raspar a cabeça de um homem na ausência dele". Todos nós precisamos uns dos outros para combater juntos este flagelo. Como Angela Davis também diz, em uma sociedade racista, não ser racista não é suficiente, temos que ser antirracistas.

Quantas vezes a senhora já esteve no Brasil e do que mais gostou?

T. C. - Tenho viajado muito para o Brasil, estive no Rio, São Paulo, Ceará, Porto Alegre, Brasília, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Mas ainda falta conhecer muitos lugares. Eu amo o Brasil e seu povo. Acho que tenho mais amigos e conhecidos aqui do que em Cuba. Adoro a música, a comida, a cultura, suas paisagens, cidades e suas cores, o mar, os aromas e a alegria. Tenho amigos no Brasil que são como irmãos, eles me recebem em suas casas toda vez que eu venho, eles me oferecem seu tempo, eles me mimam. Eu me sinto feliz cada vez que chego à minha segunda pátria.