SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 1974, Marco Nanini equilibrava a comédia no trabalho com uma tragédia pessoal -seu pai estava internado, e já desenganado, para tratar um câncer agressivo.

A peça que o jovem ator fazia àquela altura, "As Desgraças de uma Criança", era a releitura de um texto antigo, cheia de brincadeiras e improvisos. Num dia em que estava particularmente desiludido, atuava de maneira tensa. Não conseguia relaxar o público.

Até que, numa cena caminhando entre a plateia, transbordou: "Meu pai está morrendo de câncer, e vocês aí, se divertindo à minha custa!". Todo mundo veio abaixo em gargalhadas.

Quase 50 anos depois, ele ainda se lembra da cena. "Como é que digo uma verdade e as pessoas morrem de rir acreditando que é mentira? Isso é o teatro."

Esse depoimento está no prólogo de uma biografia escrita com apuro factual e desenvoltura literária pela jornalista Mariana Filgueiras, que procura decantar as verdades embebidas em mentiras na vida de um dos grandes intérpretes do nosso teatro.

A raiz do livro tem uma peculiaridade. Foi iniciativa do próprio Nanini, que à época da germinação do livro estava à beira dos 70 anos -hoje, tem 74- e começava a se preocupar em "deixar um obituário". Mas não queria escrever nada.

É curioso porque, durante a entrevista que deu ao lado da biógrafa para esta reportagem, Nanini diz algumas vezes que não gosta de se expor. E, ao final da conversa, ressalta que gosta que "suas coisas mais íntimas fiquem protegidas".

Isso contrasta com uma biografia que não hesita em pisar terreno minado, como o rompimento brusco com Marília Pêra -diretora com quem criou o maior acontecimento teatral de sua carreira, "O Mistério de Irma Vap", ao lado de Ney Latorraca, e atriz com quem formava uma dupla de tamanha sintonia que era comparada a Paulo Autran e Tônia Carrero.

"Eu estou tentando me acalmar", afirma Nanini, não sobre esse episódio específico, mas tensões mais recentes que o amuaram. "Já estou numa idade de ficar mais calmo, mas meu temperamento é de explodir de repente. E esses pitis que eu tive me destruíram, me abalaram muito."

É algo demonstrado num caso recente, quando filmou "Greta", obra sensível e despudorada sobre um enfermeiro gay apaixonado por Greta Garbo. Contrariado por um problema técnico ao fim das gravações, o protagonista não quis ir à confraternização de despedida do elenco.

No dia seguinte, ligou para o diretor, o estreante Armando Praça, e disse: "Aqui quem está falando é o irmão gêmeo do Nanini. Ontem eu soube que ele saiu daí muito aborrecido, se precisar eu posso voltar para substituí-lo."

É com delicadeza parecida que o livro toca nos primeiros amores do ator, que teve relações pontuais com mulheres, mas se apaixonou por homens desde muito jovem -mais notadamente por Nando, seu parceiro desde 1986, que foi quem ajudou Nanini a se conectar a esta entrevista por Zoom.

"Alguns artistas têm facilidade de falar sobre isso. Eu não", afirma. Ele abordou sua homossexualidade na imprensa pela primeira vez há 12 anos, numa entrevista à revista Bravo. Falou de passagem, mas de propósito, sobre "os namorados" que pintavam em sua vida.

"O jornalista [Armando Antenore] disse que eu já tinha feito tanta entrevista que ele não sabia mais o que dizer. Aquilo ficou na minha cabeça. Eu já tinha intenção de algum dia declarar, para não ficar sempre atrelado a esse sentimento de vergonha. Deixei então isso rapidamente numa frase. Deu o ponto de partida para me livrar desse estigma."

A biografia feita por Filgueiras, "O Avesso do Bordado", é autorizada, como a autora admite de pronto, e elaborada com seu objeto ainda vivo -o que contraria recomendações de nove entre dez biógrafos. Primeiro, porque ainda vão acontecer coisas na vida do personagem. Segundo, porque é maior a tentação de o autor se constranger ou autocensurar.

A escritora tem uma opinião diferente. "O ideal seria ter ao menos duas biografias, uma com a pessoa viva e outra depois de morta. Senão, você não encontra a subjetividade da própria pessoa, não sabe o que colou mais fundo nela."

Ela dá um exemplo. Não sabia que Nanini tinha uma ligação tão forte com animais e o quanto isso era parte estruturante de seu processo criativo. Uma cena-chave do livro mostra o ator se agachando em frente a um boxer, espelhando-o num exercício de empatia.

"Ele realmente convive com os animais para tomar deles reações, movimentos, expressões. Anda com um elenco dentro da própria casa."

O título do livro adianta outro aspecto central da criação de Nanini. "O Avesso do Bordado" se refere tanto ao trabalho manual, colorido e minucioso que o ator faz com seus roteiros quanto a uma frase do ator Emiliano Queiroz que nunca saiu da cabeça da biógrafa.

"Desde que o conheci, o que mais me chama atenção é o acabamento que Nanini dá aos personagens. São os detalhes, uma postura que seja. Nem sempre todos veem, mas ele se preocupa com o avesso do bordado".

As bordadeiras sempre dizem, completa a escritora, que o mais importante de toda peça de vestuário não é sua face, mas seu interior, as linhas, forros e aviamentos que lhe dão estrutura.

Para o vilão cangaceiro de "O Auto da Compadecida", ele mandou fazer um olho de vidro ao qual levou dias para se acostumar. Ficou vendo falcões no YouTube para tirar deles a postura imponente de Augusto, o monarca da novela "Deus Salve o Rei".

E o Lineu Silva de "A Grande Família" era totalmente inspirado no pai de Nanini, Dante, da fivela da calça à preocupação com a compostura. Maître de grandes hotéis, seu trabalho fez o ator recifense, quando criança, morar em endereços que iam de Manaus a Belo Horizonte.

"Procuro me envolver com o personagem de tal forma que chegue ao espectador pela emoção, não só pela visão", diz o ator, de óculos e cabelos grisalhos desarrumados em sua casa. "Gosto de incorporar o personagem todo, sentir ele todo. Quando estou fazendo, esqueço a realidade. Espero que o público se entregue também à fantasia."

Mas às vezes a realidade se mete no meio -como naquela história do câncer de seu pai. Ou em outro espetáculo memorável, sete anos depois.

Era 1981. Nanini almoçou um banquete, como cortesia de um amigo ricaço, e saiu direto para apresentar uma sessão do popularíssimo besteirol "Doce Deleite" ao lado de Marília Pêra. Entrou em seu carro velho, chegou ao teatro e se enfiou numa fantasia de duende para o primeiro esquete. Começou a rir da própria penúria -e não parou mais.

Marília estranhou, não entendeu, mas se contagiou. Os dois fizeram a peça inteira às gargalhadas e a atriz, em respeito ao público, disse que quem quisesse podia ir à bilheteria pegar o dinheiro de volta. Ninguém sequer pensou em fazer isso.

O AVESSO DO BORDADO: UMA BIOGRAFIA DE MARCO NANINI

Preço R$ 119,90 (344 págs.); R$ 44,90 (ebook)

Autor Mariana Filgueiras

Editora Companhia das Letras


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