RIO DE JANEIRO , RJ (FOLHAPRESS) -

O suicídio do irmão mais velho alterou a rota literária de Thiago Camelo. Em junho de 2018, seu primeiro romance germinou do vazio aberto entre o térreo e o sétimo andar. De arco narrativo sutil, "Dia Um", lançado pela Companhia das Letras, vasculha o caos interno acelerado desde que seu irmão de 41 anos se jogou do quarto de um apart-hotel em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Se uma depressão precedeu o esboço do romance, a sua escrita se deu, por contraste, no ambiente feliz da Casa da Pedra, em Botafogo, ocupada por um coletivo de artistas. Ele estava rodeado de amigos, festas e cervejas quando sentou no sofá e escreveu as primeiras 15 páginas do livro, que revolvem as horas seguintes à queda, atravessadas pela melancolia familiar, a autovigilância obsessiva e as várias voltas em torno do trauma. "O suicídio é uma espécie de deus das culpas. O suicídio é uma espécie de deus das saudades", diz o narrador.

Camelo define seu romance como "atmosférico" e evita se reconhecer na autoficção. Sua inspiração vem das subversões narrativas do cinema de Hong Sang-soo, Chantal Akerman e Jonas Mekas. "Enxergo a autoficção hoje no Brasil como um projeto estético que tem como desejo a provocação. Uma provocação, um jogo, que parte de uma disposição estética de sublinhar e esconder. Eu não faço nada disso no meu livro. E ele também tem muita inventividade. Sendo mais claro, tem muita coisa que de fato não aconteceu na minha vida ali", pondera o escritor formado em jornalismo e cinema pela PUC do Rio de Janeiro.

Antes de seu primeiro romance, o carioca Thiago Camelo lançou os livros de poemas "Verão em Botafogo", de 2010, e "A Ilha é Ela Mesma", de 2015, e "Descalço nos Trópicos sobre Pedras Portuguesas", de 2017.

Nesse ciclo poético, ele desenvolveu também um caminho de letrista de música popular e se tornou parceiro de seu irmão, Marcelo Camelo, hoje residente em Lisboa. No álbum "Estratosférica", a cantora Gal Costa gravou uma canção dos Camelo, "Espelho d'Água" -"Toda sorte de paz/ Rodeia os nossos passos/ Não sinto mais o tempo, oh flor/ Teus olhos põem o sol de amor".

"Meus livros de poesia foram me carregando até aqui. O último, o 'Descalço nos Trópicos sobre Pedras Portuguesas', é formado por poemas longos, um tanto narrativos, que juntos têm até arco narrativo. Ainda não é prosa, porque têm aquelas elipses e quebras, pulos no tempo e no sentimento, mas está quase lá", diz Camelo.

A técnica do narrador em segunda pessoa cria um "eu" massacrante, autorreflexivo, com um dedo apontado contra a própria testa, abrindo um jogo virtuoso de alteridade e autopsicografia. "Você não viu a morte. Também não quis subir ao apartamento de seu irmão. Tava tudo tão bagunçado..., seu pai disse. Você não viu a morte, o quarto da morte, a janela da morte, o rosto sereno dele. Você pensa nisto com frequência --no corpo morto do seu irmão".

"Há dois dados assumidamente autobiográficos no livro, e eles se apresentam nas primeiras páginas. Meu irmão mais velho se matou, e eu lido com problemas emocionais delicados desde antes da tragédia. Seria natural escrever em primeira pessoa, porque essas duas questões assumidamente autobiográficas são o centro do livro", afirma Camelo.

No entanto, a leitura de um trecho de "A Visita Cruel do Tempo", de Jennifer Egan, contribuiu para a escolha da voz em segunda pessoa. Sabe lá por qual mágica, isso destravou seu fluxo de memória e ficção. "Pode ter a ver com a tragédia, que coloca a gente nessa frequência às vezes, enxergando tudo de fora, uma distância calculada, talvez como proteção."

"Dia Um" não se prende ao suicídio, à depressão ou à ressurreição literária do irmão morto. Os retratos familiares, a atmosfera de um jogo de futebol e as pinturas da infância alegre-violenta em Jacarepaguá dão um caráter de romance de formação, em que a sua individualidade se desenvolve diante dos outros. Sobre o elo de encanto e admiração com o irmão do meio, o narrador exprime: "E quando você consegue discordar com clareza de seu irmão, já adulto, você sente um tipo de iluminação infrequente, um senso de identidade -eu pertenço a mim mesmo- revigorante. Você também viveu, você também aprendeu sozinho".

Thiago Camelo garante que a experiência de escrever o livro não o ajudou a conhecer zonas ignoradas de Leo, o irmão mais velho. "Não tive nenhuma grande revelação. A escrita para mim é algo muito racional, talvez até mais do que eu gostaria. Nunca me perdi no personagem, nem mesmo nos momentos mais autobiográficos", ele diz.

"No fim, sem a menor dúvida, tenho mais paz em relação à morte trágica do meu irmão. Aceito a decisão dele, e até a consequência dela na minha família. O que eu descobri, agora com o livro lançado, é o tanto de gente que viveu histórias parecidas, seja depressão, seja tentativa de suicídio, seja suicídio na família. Em nenhum momento sequer pensei em escrever esse livro para tentar ajudar alguém nesse sentido."

Nos descansos da escrita, Camelo ia até o pátio da Casa da Pedra e jogava basquete, sozinho, lançando repetidas vezes a bola na cesta. A cada acerto, sentia mais perto o dia dois.


Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!