SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - É difícil não sentir um misto de frustração, raiva e descrença ao descobrir que uma série que você gosta foi cancelada. Produções como "1899", "Anne With an E", "Sense8", "The OA", "Raised By Wolves", "Gossip Girl" e "Julie and the Phantoms" são algumas das dezenas que não sobreviveram à foice das plataformas de streaming nos últimos tempos.

Pelo menos 20 séries foram canceladas pela Netflix desde o ano passado. No início de janeiro, os criadores da cabeçuda "Dark" anunciaram que "1899", sua nova aposta, havia sido cancelada pela plataforma pouco mais de um mês após a estreia. Títulos como "Fate: A Saga Winx" e a brasileira "Maldivas" também não foram renovadas, segundo pessoas envolvidas nas produções.

No mesmo período, a HBO Max deu fim a "Minx" e "Westworld", um dos seus títulos de grife. O Amazon Prime Video, por sua vez, não deve renovar "Panic" e "Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado". A série "A Misteriosa Sociedade Benedict", do Disney+, foi descontinuada após duas temporadas. Na última semana, o Hulu cancelou "Reboot", exibida no Brasil pelo Star+. Os fãs ficaram a ver navios.

Mas por que tantas séries são canceladas pelas plataformas de streaming hoje em dia?

Várias métricas são observadas antes de a decisão ser tomada, diz Paulo Ratz, que foi gerente financeiro de produção na Netflix Brasil entre 2018 e 2021.

A Netflix mede, por exemplo, quantas pessoas assistiram ao título e quantas foram até o final, quem assistiu a mais de um episódio e por quanto tempo os espectadores ficaram sintonizados. "Tudo é analisado até que se chega num índice final. Esse número é comparado ao obtido por conteúdos similares. Se a série bate a meta, é provável que seja renovada", afirma Ratz.

Para além dos cancelamentos, há títulos que passam anos engavetados pelas plataformas. As produções caem num limbo, fadadas ao esquecimento. É o caso das séries brasileiras "Super Drags" e "O Mecanismo" e da comédia americana "The Politician".

A maioria dos seriados descontinuados nem ganham um final. Quem gastou quase oito horas assistindo aos episódios de "1899", por exemplo, nunca vai descobrir a solução dos enigmas deixados em aberto.

A notícia de que uma série foi cancelada costuma ser dada pelos roteiristas, produtores, atores ou pela imprensa especializada -como aconteceu com a maioria dos casos citados neste texto. As plataformas raramente se pronunciam porque a decisão gera uma repercussão negativa e imediata para a marca, diz Ratz.

A Netflix parece mesmo desgostar da palavra "cancelamento", afirma o cineasta Esmir Filho. O criador do seriado "Boca a Boca", lançado pela plataforma em 2020, conta que a produção não deve ganhar novas temporadas apesar de a plataforma nunca ter decretado o fim do título.

"Também não gosto do termo. Dá a ideia de que a série fracassou, e eu não vejo 'Boca a Boca' como uma obra cancelada. É uma série que está lá para ser vista", diz.

Procurada, a Netflix disse não ter um porta-voz para comentar o assunto. Plataformas como HBO Max, Amazon Prime Video, Disney+, Star+, Paramount+ e Globoplay também não quiseram falar com a reportagem.

O americano Ted Sarandos, um dos diretores-executivos da Netflix, quebrou o silêncio da empresa em entrevista ao portal Bloomberg em janeiro. O empresário afirmou que a plataforma nunca cancelou uma série de sucesso.

"Muitos desses títulos eram bem-intencionados, mas foram vistos por uma pequena audiência e tiveram um alto orçamento. O segredo é conseguir falar para pequenas audiências com baixos orçamentos. Se você faz isso bem, pode fazer para sempre", disse.

É um tema que inflama o público. "Ficar mantendo um streaming que só cancela séries novas é perda de tempo", publicou uma pessoa no Twitter. "A real é que a Netflix decaiu muito, cancela tudo que presta, só renova série bosta de adolescente", escreveu outro.

Os envolvidos em produções descontinuadas tampouco ficam contentes. Jantje Friese e Baran bo Odar, os nomes por trás de "1899", disseram sentir um peso no coração ao anunciarem o fim da série.

"Gentefield", seriado da Netflix que acompanha latinos vivendo em Los Angeles, foi cancelado em janeiro do ano passado, segundo o portal Deadline. A cocriadora Linda Yvette Chavez publicou uma carta aberta no Instagram, na qual afirma que vivemos num mundo em que "arte revolucionária é mercantilizada". "Métricas e algoritmos nunca vão medir o verdadeiro impacto do que fizemos na série", escreveu.

Esmir Filho, de "Boca a Boca", faz coro à opinião de Chavez. "É delicado tomar decisões baseadas só no algoritmo. A gente perde a vontade de ousar e aí tudo fica chato, monótono e igual. É importante apostar nos títulos que atingem só alguns nichos porque o público pode crescer depois", diz.

Ratz explica que "Boca a Boca" surgiu num período em que ficção científica virou a principal aposta da Netflix por causa do sucesso da distópica "3%". Depois que a onda passou, a plataforma quis replicar o sucesso de "Sintonia", que virou um fenômeno de audiência.

O cineasta confirma que há mesmo obsessões sazonais. "Satura porque fica todo mundo vendo as mesmas coisas. Talvez seja bom para os números, mas não funciona para a qualidade do produto."

Cerca de um mês é o tempo que uma série tem para mostrar bons resultados e garantir sua renovação, diz Ratz. Depois desse período, o interesse pelo título pode cair vertiginosamente por causa do volume massivo de lançamentos.

"Julie and the Phantoms", por exemplo, não chegou nem perto do resultado que era esperado de acordo com o ex-gerente. O cancelamento da série foi anunciado pelo seu criador em dezembro de 2021, mais de um ano após o lançamento. Um abaixo-assinado que pede pela segunda temporada acumula mais de 220 mil assinaturas.

Renovações de seriados agora são tratadas como notícias bombásticas pelas plataformas, pela imprensa e pelo público. Qualquer rumor sobre cancelamento também vira motivo de burburinho nas redes sociais.

O time de redes sociais da Netflix está de olho nas movimentações feitas pelos fãs na internet, diz Ratz, mas a empresa leva em conta fatores que vão além das vontades de uma parte dos espectadores. "A empresa nunca foi focada em dinheiro, mas em criar estratégias para conseguir agradar a família, do avô à criança", diz.

"A gente se apega emocionalmente porque quer ver um final para a história, mas é preciso entender que estamos falando de uma empresa. Não dá para fazer uma série cara só porque um vigésimo do público se agradou", acrescenta.

Gilberto Gil canta em "Rep" que o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe. Para Filho, essa é uma máxima que deveria ser adotada pelo mercado audiovisual. "Às vezes o importante não é o número de pessoas que a série alcança, mas o quão profundo as atinge", conclui.


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