(FOLHAPRESS) - No finalzinho do último episódio de "Chuva Negra", surge na tela uma dedicatória: "Para todas as famílias. Todas". Não se trata de um spoiler -o espectador verá já desde as primeiras cenas da série que o grande tema ali são as relações familiares. Nem sempre tranquilas, mas cujos problemas acabam por ser resolvidos diante do respeito mútuo e da afetividade.

O segundo "todas" da mensagem final não é tanto um termo universalizante, mas sobretudo uma maneira de deixar claro que as famílias não tradicionais também são famílias e devem se sentir celebradas pela série.

Escrita e dirigida pelo também ator Rafael Primot, a produção é uma defesa da possibilidade de convívio entre indivíduos muito diferentes, mas ligados pelo carinho e pelo amor, muito mais do que por laços sanguíneos. Juntas, as pessoas que se amam são mais fortes.

Exibida em dez episódios no Canal Brasil e já integralmente no catálogo da Globoplay, a trama começa acompanhando Nancy, vivida por Julia Lemmertz, e Geraldo, papel de Zécarlos Machado. Pais de um adolescente com síndrome de Down e de mais dois rapazes adultos, eles decidem um dia fazer uma viagem sozinhos para tentar reavivar o casamento, que há anos esfriou. Mas o avião some dos radares, e os três filhos do casal precisam encarar uma nova realidade, inclusive financeira.

Decidem morar todos juntos, levando também para a casa a esposa mal-humorada do rapaz mais velho e seu filho recém-nascido. Aquele lar de classe média abriga ainda a tia velha e chata dos três rapazes e a funcionária solícita que cuida do caçula da família.

A série é um melodrama burguês difuso, em formato coral, com diferentes personagens revelando seus problemas pessoais a cada cena; não tem propriamente um protagonista. O filho mais velho perdeu o emprego e dá sinais de alcoolismo; sua mulher se mostra frustrada com o casamento e se fere às escondidas com uma navalha. O filho do meio parece um adolescente tardio, enquanto o mais novo está sempre à procura de uma figura materna ou paterna.

Esses dramas pessoais não têm exatamente um desenvolvimento -são antes pinceladas sobre temas relativos ao convívio familiar do que propriamente um estudo sobre qualquer uma das questões apresentadas. E "Chuva Negra" não pretende dar respostas a nenhuma delas. Em geral, o que o roteiro parece dizer é que algumas coisas não têm solução óbvia, e assim a série até consegue uma gama de personagens complexos, a respeito dos quais nada é unidimensional.

São complexos, mas incompletos -parece sempre faltar alguma peça na composição de cada um, e chega-se ao décimo episódio compreendendo não muito mais sobre eles do que já se sabia no primeiro. "Chuva Negra" tem elementos de mistério, mas não é exatamente uma série que fará um espectador ficar ansioso pelo próximo episódio. É rarefeita demais para isso.

Primot às vezes parece ter criado a premissa da família em reformulação apenas para alocar ali temas menores que quer abordar. Nesse sentido, salta aos olhos seu interesse pela questão da representação positiva de minorias. Há um personagem com síndrome de Down, uma mulher trans, uma casal gay interracial -todos apresentados como pessoas que sofrem, sim, preconceitos, mas cuja tônica de sua existência não é apenas a questão que as marginaliza.

A iniciativa é louvável, mas em geral esbarra em incoerências adventícias. A megera vivida por Denise Del Vecchio, por exemplo, é uma mulher altamente conservadora -homofóbica, transfóbica e racista. Mas o advogado de confiança dela é um homem anão, que surge em cena como se fosse um engravatado imponente qualquer. Embora seja boa a iniciativa de usar um ator com nanismo para interpretar um personagem "comum", sobre o qual essa condição física não é sequer mencionada, fica difícil acreditar que aquela senhora tão cheia de preconceitos fosse contratar um profissional com qualquer traço físico não normativo (ela é tão reacionária que talvez não aceitasse sequer uma advogada mulher).

Mas mais complicada é Micha, vivida por Leona Jhovs, a funcionária trans que cuida do rapaz com Down. Ela tem altivez, sabe se defender e deixa claro que é uma pessoa como outra qualquer, mas na trama ela aparece sobretudo com duas funções: ser uma faz-tudo a serviço dos outros moradores da casa ou então o objeto de escape sexual dos dois filhos mais velhos, a cujos convites libidinosos ela invariavelmente diz sim. A representação "positiva" da mulher trans, ali, inabilmente se mistura ao reforço de estigmas.

Apesar das inconsistências, a série é bem-sucedida em algo importante: torna palpável o afeto entre os personagens. Em parte devido ao elenco, inclusive a própria Leona Jhovs; a câmera gosta da presença dela, e se a atriz tiver oportunidades o suficiente de explorar esse fascínio, há de construir uma bela carreira.


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