SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Num passado analógico, o alvo preferencial da fofoca era a celebridade que tinha sido flagrada aos beijos com um moreno misterioso ou os vizinhos que protagonizaram um barraco na reunião de condomínio. Mas em tempos de podcast é a vida de gente desconhecida que tem dado o que falar.
Basta olhar a lista dos programas mais ouvidos do país nas plataformas de streaming. Um campeão de audiência era a história do "Não Inviabilize" que narra como um executivo perdeu o emprego depois de levar uma rasteira de seu subordinado.
Quando o mexerico não é o tema central dos programas, os apresentadores inserem quadros para dar pitacos na vida dos outros, caso do "Afetos", "Um Milkshake Chamado Wanda" e do "Estamos Bem".
O sucesso desses podcasts reforça uma velha máxima --a de que pimenta nos olhos dos outros pode, sim, ser refresco. É isso que acredita o podcaster Duda Dello Russo, que apresenta o "Me Conte uma Fofoca" desde o ano passado ao lado do jornalista Thiago Teodoro.
"Ouvir que alguém levou um golpe de R$ 5.000 com um cartão clonado deixa as pessoas abismadas", diz ele, acrescentando que as histórias prediletas da audiência envolvem falcatruas. "Saber dos problemas dos outros é ótimo. A gente está cheio deles e percebe que não somos os únicos."
Sua visão encontra eco na do psicanalista Leonardo Goldberg, autor do livro "O Sujeito na Era Digital". "O anônimo consegue oferecer ao ouvinte uma possibilidade de identificação muito maior do que os famosos, que se colocam no lugar de quem não falha", diz ele, que é doutor em psicologia pela USP. "O desconhecido foge ao ideal do final feliz. Ele é muito mais universal."
Isso acontece, diz o psicanalista, porque o fracasso é um dos elementos que mais humaniza um ser e, apesar disso, as pessoas tendem a acreditar que são as únicas que experimentam dissabores. "Essas histórias mostram que o nosso sofrimento não é inaugural. Ele aconteceu antes e com outras pessoas."
Para Goldberg, o sucesso destes programas está atrelado ao fato de que eles não tentam ensinar lições de moral, como ocorre em fábulas ou em narrativas como os filmes de animação da Pixar. "Ouvi-las traz uma sensação parecida com a de ler um livro do Nelson Rodrigues. Você não vai encontrar uma moral da história. Na verdade, vamos encontrar elementos imorais e amorais."
Criadora do "Não Inviabilize", o podcasts sobre vida alheia mais bem-sucedido do país, com mais de 100 mil reproduções mensais, diz que as histórias que conta não são dicas para o ouvinte não cometer os mesmos erros, mas uma forma de gerar acolhimento.
Ela, no entanto, afirma que seu programa é sobre contação de histórias e refuta a pecha de fofoqueira por entender que essa classificação tem um viés machista. "Ninguém fala que o programa do Fábio Porchat é sobre fofoca, por exemplo. As pessoas falam que é uma contação de histórias."
A ideia de que fofocar é uma atividade que atrai mais as mulheres já é desmistificada até pela academia. Um estudo da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, gravou conversas de 467 pessoas ao longo de um dia e não encontrou evidência que sustente a predileção de um gênero.
A única diferença que os pesquisadores identificaram é que, quando as mulheres fofocam, tendem a tratar de temas neutros e sem fazer juízo de valor.
Há ainda pesquisas que sugerem que a fofoca teve papel crucial na evolução humana. Um dos pioneiros nesse campo é Robin Dunbar, professor emérito de psicologia evolucionista da Universidade de Oxford.
Para explicar sua tese, ele compara os seres humanos com macacos, uma espécie que fortalece seus laços por meio da catação social, isto é, do ato de limpar o pelo um do outro atrás de sujeiras. "O ser humano faz algo parecido com isso, mas adicionamos a fofoca, o que permite criar laços com um número maior de indivíduos", diz.
Com fofoca, o pesquisador se refere a conversas sobre assuntos pessoais e sociais sem que haja comentários maliciosos. Ele diz que que piadas e contação de histórias, principalmente as tristes, aumentam a liberação de endorfina, hormônio associado à sensação de felicidade.
Professor de psicologia da Universidade de St. Andrews, na Inglaterra, Klaus Zuberbuehler diz que falar sobre a vida alheia ajudou nossos ancestrais tanto em contextos de competição quanto de cooperação. "A fofoca permite que as pessoas se mantenham atualizadas sobre quem pode estar disponível para formar um casal ou quem não é confiável e portanto deve ser evitado."
Teorias como essas têm ajudado a limpar a reputação de quem gosta de um fuxico. Se antes era motivo de ofensa, hoje há quem diga com orgulho ser fofoqueiro de carteirinha. Uma dessas pessoas é a escritora americana Kelsey McKinney, que ajudou a criar o podcast "Normal Gossip" para falar sobre a vida de pessoas comuns.
Em artigo publicado no The New York Times, ela diz logo no título que "fofoca não é pecado". No texto, argumenta que demonizar a fofoca é uma forma de proteger homens poderosos e calar a voz de mulheres que se levantam contra abusos. Como exemplo, cita o caso de Harvey Weinstein, ex-todo-poderoso de Hollywood acusado de abusar sexualmente de atrizes.
Por anos, os rumores sobre os assédios foram sussurrados nos corredores da indústria sob a forma de fofocas. Em 2017, no entanto, a imprensa americana conseguiu confirmar os casos, dando início ao movimento MeToo contra o assédio.
No Brasil, também existe quem não tem pudor em admitir que gosta de fuxicar. É o caso da jornalista Isabela Reis, criadora do podcast "Conselhos que Você Pediu", que ajuda ouvintes a resolver problemas. Ela diz que o interesse pela vida de pessoas comuns aumentou graças às redes sociais, porque qualquer um pode viralizar ao compartilhar detalhes constrangedores de suas rotinas.
"Somos naturalmente fofoqueiros, e as redes sociais descortinaram ainda mais a nossa curiosidade", diz a podcaster, que se considera, sem nenhuma vergonha, uma fofoqueira profissional.
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