CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - "O mais polêmico e audacioso filme de todos os tempos: 'Calígula', o império da orgia." Era assim que um empostado narrador anunciava, na TV aberta, a exibição de um filme sobre Roma Antiga na madrugada --naturalmente, não pelo seu caráter educativo.

Tampouco foi por uma inocente paixão ao cinema que jornalistas e entusiastas lotaram a sessão desse mesmo filme no Festival de Cannes, nesta quarta-feira, na premiére da sua "cópia definitiva", recheada de bacanais bizarros e com o ator Malcolm McDowell, de "Laranja Mecânica", no papel-título.

A apresentação fez parte da seleção Cannes Classics, que este ano conta ainda com exibições de "O Desprezo" --escolha um tanto óbvia para homenagear Jean-Luc Godard, morto em setembro--, dois longas do mestre japonês Yasujiro Ozu, "Thelma e Louise", de Ridley Scott, "A Casa Encantada" de Hitchcock e outras joias escondidas.

O longa do italiano Tinto Brass, de 1979, causou especial bafafá no Brasil em 1992, quando a rede Organizações Martinez --a mesma que exibia os berros justiceiros de Luiz Carlos Alborghetti-- decidiu apelar para a audiência exibindo o filme numa programação com o sugestivo nome de Tensão Total (a vinheta era uma mulher rebolando em frente a uma grande letra T).

Com quase três horas, o longa foi dividido em duas partes pela emissora e, após um processo de obstrução na Justiça, só a primeira pôde ser exibida. Afinal, a versão editada que rodou o mundo em fitas clandestinas e DVDs de fundo de armário tinha closes de sexo oral e penetração que pareciam descolados do restante.

Não à toa, essa produção roteirizada por Gore Vidal e produzida por Bob Guccione, criador da revista masculina Penthouse (daí a insistência nas surubas), acabou como um filme maldito para seus realizadores e estrelas.

A versão restaurada --fruto de um trabalho de três anos a partir de 96 horas de negativos originais e com uma nova introdução animada por Dave McKean--, porém, é bem menos escandalizante que a lenda.

McDowell faz um imperador serelepe e sem escrúpulos, dividindo os holofotes com uma jovem Helen Mirren, com 34 anos na época, como a libertina esposa Cesônia, e Peter O'Toole, vivendo Tibério.

Os cenários grandiosos, frontalmente artificiais, imprimem um visual teatral a partir do pastiche da arquitetura romana com o tom extravagante de um "Satyricon" --mas sem o talento de Fellini.

Assumidamente cômico, com um protagonista que berra, marcha nu, nomeia seu cavalo como chefe do senado e faz "fisting" num soldado, o filme tira sarro do poder e da decadência do Império Romano (e da hipocrisia do mundo moderno) em tom de pornochanchada.

Como é longo, aos poucos as gags parecem se empilhar sem muita razão em episódios que se unem por um fiapo de história --há humilhação de pessoas gordas, aparelhos de masturbação, soldados que lutam pelados contra plantas, estátuas de pênis e vaginas enormes, um personagem mudo digno de Zorra Total e até um parto a céu aberto.

É um circo de horrores em que os bacanais acabam sendo as partes mais agradáveis, como a coleção de "estátuas transantes" de Tibério, apresentadas num grande painel dantesco, ou o bordel imperial com as mulheres dos senadores, que ocorre num navio cenográfico.

O saldo, para o bem e para o mal, é de que "Calígula" se sai melhor como mito do que como filme. É o contrário do que aconteceu com a homenagem de Cannes ao francês Jacques Rivette.

Apesar do estopim do festival ter sido apenas a partir da sessão de "Jeanne du Barry" --o longa polêmico da vez graças ao ressurgir de Johnny Depp nas telonas--, na terça-feira, a sala Debussy já estava cheia no início da tarde para a primeira sessão do festival, com a restauração de "Amor Louco", de 1969.

O longa de quatro horas foi celebrado numa sessão de redescoberta após anos numa cópia irregular, após o negativo se perder num incêndio nos anos 1970.

A seleção soube honrar o mais cerebral dos cineastas da nouvelle vague, destacando uma obra que pode passar despercebida e convidando suas estrelas para o palco --a belíssima Bulle Ogier, hoje com 83 anos, frequente parceira do cineasta, e Jean-Pierre Kalfon, de 84.

Mesmo menos célebre, esse épico sobre teatro e crises conjugais é uma espécie de iniciação para as 13 horas de "Não me Toque", lançado dois anos depois.

Rivette acompanha como a relação tensa entre a atriz Claire e seu marido Sebastién, diretor e também ator de teatro, afunda um casamento e os ensaios para uma montagem moderna da "Andrômaca", de Racine.

Com pitadas de humor e melancolia, "Amor Louco" se desdobra como a matriosca que Claire, atordoada pelas desfeitas do marido insensível e lacônico, abre furiosamente, bagunçando todo o seu quarto.

Entre a observação da trupe de teatro --feita por Rivette e por uma equipe à parte, com o documentarista André Labarthe, em películas diferentes-- e o violento silêncio do casal, Rivette propõe um complexo jogo de cenas que se complementam entre ficção e realidade, abrindo novos caminhos a cada capítulo do filme, todo rodado ao longo de cinco semanas.

Como as infinitas bonecas russas, "Amor Louco" evoca o próprio ato criador e a relação entre a palavra (representada pelo texto de Racine, repetido à exaustão) e os gestos dos atores (em sintonia com o trabalho da dupla Straub-Huillet), sem transformar tudo numa sessão de psicanálise ou num julgamento moral ou social.

Se não tinha a influência católica de seu colega Éric Rohmer, o francês se rende a certos mistérios da imagem cinematográfica e da relação masculino-feminino --e aqui Sebastién irá conduzir a visão do espectador com o ambiente opressivo que cria para a esposa desde que a humilha num ensaio.

Como era de se esperar num festival frenético como Cannes, nem todos aguentaram ou puderam ficar até o final da projeção, mesmo que a oportunidade fosse rara. As palmas de quem ficou, porém, duraram bem mais que os breves segundos de quem aplaudiu "Jeanne du Barry" por educação.

O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.


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