SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Numa tarde em São Paulo há mais de quatro décadas, Ney Matogrosso passou várias horas nu no apartamento de Vania Toledo, sendo fotografado por ela. "A Vania era uma amiga íntima. Eu estava pelado, ela escolhia coisas, trazia lençóis vermelhos, tudo o que ela pedia para eu fazer eu fazia, sem nenhum problema, mesmo", conta o cantor.
Na foto que comporia depois o ensaio "Homens", publicado em livro em 1980, Ney aparece nu dentro de uma banheira, com a mão na cabeça e semblante tranquilo, olhando para a câmera. Uma luminária de mesa faz a luz da cena, e seu fio fica exposto quase no meio do quadro.
O livro, hoje esgotado, conta ainda com retratos ousados de Caetano Veloso, de amigos e até do filho da fotógrafa. Apesar da perseguição política daqueles anos, paradoxalmente existia muita liberdade em relação ao corpo e à nudez, acrescenta Ney.
As imagens que compõem a publicação, assim como outros 250 mil fotogramas de Toledo, passam agora para os cuidados do Instituto Moreira Salles, o IMS. A instituição se torna a responsável por todo o acervo da fotógrafa, conhecida por retratar a noite paulistana e a cultura das celebridades no final da ditadura e no começo da redemocratização.
Os negativos, positivos, polaroides, documentos e cadernos de anotação de Toledo vão passar por cuidados e catalogação para depois servirem como fonte para divulgação de seu trabalho. Como a transferência do acervo está ainda no começo, não há mostras ou publicações previstas.
A ideia é que a obra de Toledo seja mostrada para uma geração que não a conheceu, diz Thyago Nogueira, coordenador de fotografia contemporânea do IMS. A fotógrafa morreu em 2020, aos 75 anos.
No acervo, há retratos de Gal Costa, Caio Fernando Abreu, Rita Lee, Cazuza, Pelé, Milton Nascimento, José Celso Martinez Corrêa e da banda As Frenéticas, muitos deles tirados no estúdio da fotógrafa em São Paulo. Há também fotos de políticos e empresários.
Outro núcleo são os numerosos registros da vida noturna da capital paulista nos anos 1980 --com uma câmera Yashica a tiracolo, Toledo clicava os frequentadores das boates de maneira espontânea, captando a energia de um ambiente marcado por purpurina e música disco.
"Ela mostrou como era possível fazer isso com uma câmera muito simples, participou de uma visão democrática da fotografia. Para a Vania, a fotografia pertence a todo mundo, não é uma arte refinada que se aproxima das belas artes e tem que estar nos museus caríssimos", afirma Nogueira.
O acervo é também um documento histórico do teatro brasileiro. A fotógrafa registrou tanto atores iniciantes que frequentavam o circuito da praça Roosevelt e precisavam de materiais de divulgação quanto espetáculos e astros como Marília Pêra, Raul Cortez, Marco Nanini e Ney Latorraca.
Toledo era amiga próxima de Irene Ravache, fotografada por ela várias vezes em situações profissionais ou pessoais. A atriz conta que, mesmo que não goste de posar para retratos, Toledo era a profissional com quem mais se sentia à vontade, pois ela conseguia desarmar seus personagens e os deixava à vontade.
"Eu já fui fotografada por fotógrafos de peso, numa época em que eles tinham um status muito merecido, mas havia um distanciamento com eles que com a Vania não tinha, o que fazia que as fotografias resultassem nas belezas que resultaram", afirma Ravache, que uma vez foi retrata por sua amiga como uma vampira, segurando uma cruz.
Ao circular entre intelectuais e artistas, Toledo pôde documentar a formação da cultura da celebridade de dentro e de uma maneira muito informal, algo que não seria possível atualmente, afirma Nogueira, do IMS.
"Hoje em dia as imagens são muito mais controladas pelos assessores, todo mundo é autoconsciente de uma construção de imagem, é um lugar muito engessado, e ela pegou o momento anterior a isso. As fotos dela tinham um pé na realidade do que é a vida. Não é uma vida maquiada."
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