SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pelas vozes cristalinas de alcance e duração impressionantes, ou mesmo pela estética complexa dos cantos yawanawá -alguns deles divididos em atos bem definidos, como uma ópera-, a dupla Shavorã poderia muito bem se apresentar no Theatro Municipal.
Em vez disso, costuma cantar à luz de velas ou ao redor da fogueira, no embalo de tambores, em rituais de ayahuasca. Pelo que em 1500 seria perseguida como bruxaria, hoje a dupla viaja o mundo com o propósito de levar cura para as feridas emocionais e espirituais geradas pelo patriarcado.
Repetindo a disputada agenda paulista do ano passado, a Shavorã retorna a São Paulo neste mês para uma imersão de quatro dias, entre 12 e 15 de outubro, no Sítio Saramandala, em Sarapuí, a 150 km da capital, e três cerimônias na Casa Mariri, na zona sul. Além das medicinas da floresta ayahuasca, ou Uni, e rapé -feita com tabaco moído-, os eventos são uma oportunidade para vivenciar a música e a cultura Yawanawá.
No dialeto yawanawá, do tronco linguístico do pano, shavorã designa um coletivo de mulheres; o sagrado feminino, e principalmente as dores ancestrais das mulheres, são o foco do trabalho da dupla formada por Hukena Yuvuka, da aldeia Mutum, no Acre, a primeira Yawanawá a se casar com outra mulher, e sua companheira Dominique Fonseca, não indígena de Uberlândia, em Minas Gerais.
"Cresci junto com os meninos, sem me sentir uma mulher. Foi muito difícil aceitar que eu tinha esse corpo. Passei por muitos processos até entender isso dentro de mim", conta Hukena, 31. "Agora, viajando pelo mundo, vemos outras mulheres com dores parecidas ou até piores, muitas vítimas de abuso, e queremos levar esse conforto para elas."
Abertos para todos os públicos, os rituais da Shavorã costumam ter vagas reservadas para pessoas trans.
Sem ficar devendo para os cantos gregorianos, a dupla costuma fazer coro com as artistas que acompanham nas excursões, como Yawavana e Yvarâni Yawanawá. "Nosso intuito é dar voz, recursos e empoderar as mulheres da aldeia", diz Dominique Fonseca.
Com o lançamento do disco homônimo de 2020, com versões de nove cantos ancestrais yawanawá, além de "Sentinela" -a única canção em português-, do hinário do umbanda, a Shavorã adquiriu certo status cult. Só neste ano, realizou cerimônias na Inglaterra, Holanda, Alemanha, Polônia, Suécia, Noruega e Israel. Uma excursão pelos EUA está prevista para 2024.
Elas integram uma cena de resgate cultural dos povos indígenas do Acre. Acompanhados de "caravanas", como se referem aos agrupamentos que costumam reunir vozes, violões, djembês ou atabaques, e chocalhos, os músicos-pajés de etnias como huni kuï, noke koí, shanenawa e, claro, yawanawá fazem turnês mundiais e Brasil adentro, muitos viajando de ônibus e se hospedando com amigos e produtores, feito uma banda de punk rock.
Mas na entrada de um ritual do Shavorã, além de camisetas e moletons com a logo da dupla, o público encontra artesanato de miçangas e rapé à venda.
Pintadas com os kenes -os grafismos sagrados- em jenipapo e urucum e adornadas com cocares ou uma única pena na cabeça -no caso da não indígena-, as cantoras entram, acompanhadas de uma aura mística, só quando o público está a postos.
Servida a primeira dose do chá enteógeno, é iniciada a cantoria que vai direcionar todo o trabalho espiritual. Na cosmovisão yawanawá, os cantos ancestrais têm o poder de atrair diferentes espíritos, desde antepassados até os dos animais da floresta, como a jiboia e a onça, que concedem a força para se atingir a cura.
Enquanto Bruce Springsteen é considerado um maratonista do rock pelas suas performances de três horas, as mulheres da Shavorã chegam a cantar por até 15 horas seguidas, sem desafinar, na força da medicina. Apesar dos vocais apurados, nem Hukena nem Dominique receberam qualquer tipo de instrução formal.
Filha de Hushahu, a primeira mulher pajé do povo yawanawá, a indígena diz ter descoberto sua voz, sua musicalidade e sua espiritualidade aos 16 anos, quando se submeteu à dieta do muká ou da batata sagrada, tubérculo cujo efeito seria ainda mais potente que o da ayahuasca. Para completar o rito de purificação do espírito, passa-se um ano isolado da aldeia, imerso na floresta, em abstinência sexual e de álcool, carne, sal refinado, açúcar e água pura, recebendo apenas os cuidados e as rezas do pajé.
"O corpo vai ficando muito fraco, enquanto o espírito e a mente vão ficando muito fortes. Aí você sente aquele poder", explica Hukena.
Já Dominique diz que descobriu a potência de sua voz, aprendeu a tocar violão e a desenhar os kenes, tudo em um mês, quando foi conhecer a família de sua companheira e fez sua primeira imersão com ayahuasca na Mutum. A aldeia pertence à terra indígena Yawanawá do Rio Gregório, cujo árduo processo de demarcação, iniciado em 1977, só chegou ao fim no último dia 5 de setembro, quando foi homologada pelo presidente Lula.
Dominique e Hukena se conheceram em 2016, durante uma cerimônia em Uberlândia conduzida pela acreana. Amor à primeira vista, a mineira logo passou a acompanhar as caravanas mundo afora e, com o lançamento do disco, as duas passaram a se definir como Shavorã.
Apesar dos anos na estrada, elas só se apresentaram duas vezes fora do contexto ritualístico. No ano passado, tocaram num castelo medieval em Talín, na Estônia. No final de setembro, integraram a programação do festival Gaia Connection, no Vale do Paraíba.
Ambas celebram este momento de levante indígena e intercâmbio entre os povos. "Essa é a oportunidade de uma nova troca, de uma verdadeira troca de saberes", acrescenta Dominique, ou Nãwãma, seu nome yawanawá.
SHAVORÃ EM SARAPUÍ
Quando De 12 a 15 de outubro
Onde Sítio Saramandala - Sarapuí
Preço R$ 280 (cerimônia individual) a R$ 1.440 (retiro completo)
SHAVORÃ NA CASA MARIRI
Quando Dias 27, 28 e 29 de outubro
Onde Casa Mariri - R. Dr. Ubaldo Franco Caiubi, 258, São Paulo
Preço R$ 80 (roda de rapé) a R$ 285 (cerimônia de Uni)
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