SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma estátua enorme esculpida em madeira está deitada sobre tapetes coloridos costurados à mão. A figura andrógina tem as mãos sobre a barriga, contornando com os dedos a região do umbigo --simbolizando a conexão espiritual com o mundo.

Apesar da posição vulnerável, seu semblante é o de uma divindade, uma espécie de Buda pré-hispanico, com traços asiáticos, feito com a madeira da árvore sagrada ahuehuete. Não surpreenderia se fosse um Chac Mool, nome dado a figuras pré-colombianas esculpidas nessa posição, mas é uma obra do artista mexicano German Venegas.

A escultura compõe a mostra "Histórias Indígenas", que abre no Masp nesta sexta-feira (20), com oito núcleos dedicados a apresentar à arte de povos de diferentes regiões do mundo.

A seção "A Construção do Eu", dedicada à produção do território mexicano, é uma das maiores, em que obras antigas dividem espaço com artistas contemporâneos. Em frente à escultura de Venegas está, por exemplo, uma rara pintura-colagem de Frida Khalo, em que seu corpo não é representado.

"Allá Cuelga mi Vestida", ou ali está meu vestido pendurado, de 1933, retrata um huipil, veste tradicional, aparece pendurado em um varal em meio a um cenário urbano caótico, com símbolos que remetem aos Estados Unidos -como a Estátua da Liberdade.

A tela divide o mesmo espaço que uma cópia do Códice Borbónico, calendário mexicano ilustrado que data pouco antes da invasão espanhola, e retratos de pessoas indígenas representadas com corpos próximos à iconografia clássica grega, pelo pintor Saturnino Herrán, no século 19.

Para Abraham Cruzvillegas, curador do núcleo, existe um conflito temporal na arte mexicana ligada aos indígenas. Se nos séculos pós-colonização os povos eram retratados por um viés romantizado e folclórico, hoje artistas contemporâneos indígenas não querem mais ser exotizados.

"Às vezes, quando pensamos nos povos indígenas, os associamos ao passado. Mas na realidade é algo vivo, devemos inclusive falar dos indígenas no futuro", diz, e em seguida aponta para um robô do artista Fernando Palma, que veste o que parece ser uma máscara de luta livre mexicana.

A reflexão sobre o tempo e as origens da sociedade contemporânea é o foco no núcleo brasileiro, que questiona a linha temporal estabelecida pelo ocidente, em que as civilizações gregas e romanas são consideradas o berço das sociedades modernas.

"Trabalhamos com autorrepresentação, grafismos e vida cotidiana e lembramos que nosso tempo é diferente do tempo capitalista", diz Kássia Karajá, uma das curadoras.

Um exemplo é "Barão de Antonina", do Coletivo Kókir, que denuncia a rejeição por parte dos grandes centros urbanos aos costumes indígenas. A obra é um carrinho de supermercado trançado com grafismos kaingang, indígenas que vivem no sul do país.

O carrinho, porém, está vazio, referenciando a dependência dos indígenas kaingang da venda de cestos na cidade para conseguir comprar comida nos mercados e, ao mesmo tempo, mira a forma de consumo estabelecida pela sociedade capitalista.

"Esta obra mostra como somos contemporâneos. Assim como Andy Warhol criticava o consumo exacerbado, nós também fazemos", diz Karajá.

Em passagem recente pelo Brasil, o antropólogo britânico David Wengrow, autor do livro "O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade", defendeu que os europeus criaram fantasias contra indígenas para justificar a desigualdade crescente que moldava a sociedade moderna a partir de 1500.

Segundo ele, estudos antropológicos já evidenciaram a existência de grandes cidades avançadas antes dos gregos e dos romanos, que não eram comandadas por líderes tiranos ou tinham vestígios de pobreza. Na visão de Wengrow, diante da crise climática e econômica, ouvir as soluções de pensadores indígenas -que não devem ser associados a um passado longínquo, mas sim ao presente- será essencial.

É também nesse sentido de reposicionamento em escala mundial que a arte indígena se insere no momento. Depois de sair de cartaz em São Paulo, "Histórias Indígenas" viajará para o Museu Kode, em Bergen, na Noruega.

A diferença entre os estilos artísticos dos núcleos também reforça a multiplicidade de culturas ao redor do globo. É o caso, por exemplo, de uma seção que compreende o norte da Escandinávia com partes da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia.

As obras são feitas com símbolos caros à etnia que vive em uma zona fria. Exemplo são "Nº 1", de Iver Jaks, espécie de pedestal coroado por um chifre de rena, ou "Crossing Paths", uma instalação feita em franjas que remete aos xales usados por mulheres e ligados a hábitos nômades.

No núcleo canadense, há a presença de signos ligados à água, relacionados à pesca como forma de subsistência e, ao mesmo tempo, ao respeito pelos ciclos da natureza e dos animais. A denúncia à caça de baleias em escala industrial está em diversas obras.

A seção maori, povo originário da Nova Zelândia, traz obras da geração conhecida como "modernismo maori", quando artistas indígenas se apropriaram de conceitos das vanguardas europeias para criar uma estética própria e também obras circulares que visam espelhar formas abstratas encontradas na natureza.

Já no Peru, diferentes tipos de máscaras --de animais, humanos e criaturas-- simbolizam uma espécie de ferramenta para a alteridade entre o mundo dos indígenas andinos e a sociedade como um todo.

Apesar das diferenças entre núcleos, o conceito de cosmovisão --em que homem, natureza e plano espiritual estão ligados-- perpassa todos eles. "Isso prova que a arte indígena não é naïf", diz Karajá. "Nós fazemos o contemporâneo."


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