SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Incompatível com a vida" foi a frase ouvida por Eliza Capai quando fazia o ultrassom que confirmaria as condições de saúde do seu não nascido filho. O feto, que se formara com um "buraco" na cabeça, como explicou à própria mãe, não sobreviveria.

A frase deu nome ao novo longa da diretora, que constrói uma obra envolvente em que usa a própria história como o recurso central da estrutura narrativa do filme. A perda gestacional e o luto criam o cenário ideal para discutir o aborto como problema de saúde pública, ao passo que dão vazão para que seja delicadamente destrinchada a desolação vivida por mulheres que gestam fetos com má formação e não tem o acesso garantido ao procedimento pela lei brasileira.

Capai engravida durante a pandemia de coronavírus. Começa a filmar sua gestação como registro pessoal, sem intenção de ganhar as telas. Porém, ao descobrir a má formação fetal, "além de cair no abismo", como relatou a esta Folha, pensou que esse seria um filme que faria "se não fosse a personagem". Cedeu, porém.

Na obra, que foi ganhadora do festival É Tudo Verdade e está qualificada para o Oscar 2024, a documentarista acerta ao recontar sua história em uma costura com a vivência de outras seis mulheres que passaram por situações semelhantes. A forma como o roteiro é conduzido aproxima as mulheres de quem assiste, mas não prende o tempo todo.

O tema que dá tom à obra, o aborto, demora a chegar em meio a relatos que se arrastam e, se diminuídos, talvez tivessem mais impacto. Passado o ápice, com o assunto já bem trabalhado, algumas falas perdem força na tentativa de seguir dando voz e cor à dor daquelas mulheres.

A presença quase onipresente de Capai, porém, equilibra questões escolhidas na construção do roteiro que podem deixar a desejar. Ela se torna a personagem central e nos envolve com sua história. É quem queremos ver, entender e saber. Tudo sobre sua vida, da concepção ao aborto, do matrimônio feliz ao fim do casamento, parece interessar.

Com depoimentos e imagens marcantes, a diretora cria uma narrativa dramática que mostra o sofrimento individual das mulheres retratadas como fruto de problemas coletivos, políticos e sociais. As diferentes classes sociais de cada uma delas cria subsídio para evidenciar que a confluência de sentimentos de medo, frustração, impotência e abandono são temas comuns ao acontecimento.

Os depoimentos se misturam com as cenas da vida privada de Capai, do dia a dia das mulheres e do mar. No visual, acerta ao colocar o oceano como figura de linguagem, usando a agitação das águas para ilustrar a instabilidade da gravidez, os medos causados pelas más notícias e o sufocamento evidente por meio de cenas de afogamento, que também ganhou a capa do longa. Quando se despede do filho, pouco antes do aborto, está nas águas correntes de uma cachoeira.

Capai retrata sua perda mostrando de forma visceral o resultado dos medicamentos abortivos no seu corpo. Desnuda, embaixo do chuveiro, ela grita, e apresenta o efeito literal e metafórico da perda gestacional sobre diversas dimensões no seu corpo. Seu parceiro, personagem constante em toda a obra, participa de parte desses momentos como pilar de suporte a uma perda que somente a mulher sabe qual é.

O longa, que acerta em focar na experiência feminina, com elegância abre espaço para a vivência dos parceiros. As quebras de expectativas masculinas, do homem que resolve todos os problemas, e, assim questiona sua própria masculinidade, dá tempero ao enredo.

Newsletter Todas Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres *** As violências médicas sofridas pelas mulheres retratadas, sem direito ao aborto legal, mostra o cenário real daquelas que gestam um feto em má formação e, já golpeadas com a notícia de que seus filhos são incompatíveis com a vida, percebem que estão em um não-lugar, onde nada pode ser feito.

No Brasil, a alternativa nos casos de má formação, quando não há chances de sobrevivência, é judicializar a questão. O aborto só é autorizado caso a gravidez represente risco à mulher, seja fruto de violência sexual ou em fetos com anencefalia fatal.

O aborto como problema de saúde pública vira tema na segunda metade do longa, quando a diretora traz à tona a história de uma garota de dez anos que enfrentou protesto e resistência de médicos e grupos religiosos ao tentar interromper a gravidez fruto de estupro. Ela sofrera abusos por anos.

O escárnio vivido pela menina é trançado às histórias das mulheres que não têm o acesso ao procedimento garantido por lei. Assim, Capai consegue mostrar as diferente faces da questão do aborto no Brasil, que possui uma lei restritiva que expõe mulheres a múltiplas violências.

O filme é lançado tanto no Brasil como nos Estados Unidos em um momento em que o debate sobre a legalização do aborto é efervescente. No país americano, o tema se tornou central após a Suprema Corte derrubar a decisão Roe vs. Wade, que colocava o procedimento como direito constitucional. Por aqui, o tema ganhou contorno especial em setembro, quando a ministra Rosa Weber votou pela liberação do procedimento no STF. O tema, inspiração para a diretora pela "raiva" que causa, como relatou, não tem previsão de ser votado novamente na instância superior brasileira.

O aborto de Capai é feito em Portugal, local onde estava morando quando descobriu a má formação fetal. Finaliza o longa contando que, no país, o aborto é decisão da mulher, mas omite informação importante: somente até a décima semana de gestação. Seguindo uma cartilha tradicional de documentários, amarra o final com frases que justificam os meios.

"Em Portugal, o aborto era a terceira causa de morte materna. Isso mudou depois da lei que legalizou a interrupção voluntária da gravidez. Há mais de uma década, nenhuma mulher morrem em decorrência de aborto no país."

Dando o tom político e social à própria história e ao sofrimento das mulheres em situação semelhante, "Incompatível com a vida" mostra que, por mais que a dor da perda gestacional seja uma experiência privada, o Estado tem papel preponderante na construção do trauma ao não garantir acesso adequado a tratamentos de saúde e ao aborto legal.

INCOMPATÍVEL COM A VIDA

Quando: 16 de novembro em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza e Manaus

Classificação: 14 anos

Produção: Brasil

Direção: Eliza Capai

Avalição: Muito bom


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