Bacurau
Essa mais nova preciosidade brasileira veio para mostrar que nós estamos num nível muito alto de produção de filmes. Eu, enquanto público, nunca fui do tipo que julga pela capa. Assisto tudo que me dá vontade de ir. Tenho minhas preferências, assumo, mas acho que nosso cinema recebe uma carga de preconceito inexplicável. Eu penso que, quando dizem que nossas obras são ruins, deveriam trocar a frase, dizendo coisas como: "eu não gosto do estilo de filme brasileiro que chega às salas de cinema". Ou, melhor ainda: "eu acho que os donos dos espaços brasileiros deveriam mostrar mais o que se produz aqui".
Falemos sobre "Bacurau". Diante da tela, temos um vilarejo do sertão de Pernambuco, que por algum motivo, "desaparece do mapa". Ao procurarem nas redes, ele não é localizado. Os celulares deixam de apresentar sinal. Pessoas de fora chegam dizendo que o encontraram por acaso.
Devo alertar que falarei, inevitavelmente, sobre um ou outro acontecimento da história, haja vista que isso é necessário para o tipo de análise que escolhi. O conteúdo desse texto trata-se de interpretação, a qual pode-se considerar plenamente plausível, ou não. Mas é algo que a arte me dá licença para fazer.
"Bacurau" é um filme que fala sobre a morte. Durante todo ele. Do primeiro ao último minuto, a morte é apresentada das mais variadas formas. Em muitos momentos, ela é futilizada e tem seu drama desconsiderado (não pelo roteiro, friso, mas pela forma como é tratada por alguns personagens). Porém, na maior parte das vezes, seu escancaramento foi necessário. Porque está mais do que na hora de abrirmos nossos olhos para coisas muito sérias, cujo trato não se pode mais deixar de lado, não mesmo.
Caixões pela estrada; um funeral; moradores de uma fazenda executados; homens mortos friamente; vídeos de cenas de homicídio sendo repetidamente apresentados à população; um prefeito que somente se preocupa com a população às vésperas da reeleição. É possível que a ideia de morte passe despercebida nessa última fala. Mas ela está presente. É antológica a cena em que o prefeito manda despejar, diante da escola, livros muito velhos, aos montes, como se fossem caminhões despejando lixo nos lixões. É o desenho de sua preocupação com a educação local. A alimentação e medicação que ele leva a Bacurau também mostram a proximidade da morte. Vários alimentos vencidos. Remédios perigosos para a saúde humana. Em um trecho digno de destaque, a personagem de Sônia Braga, médica - com atuação brilhante em todo o filme, diga-se - aponta o enorme mal que aquelas medicações podem fazer ao corpo humano. Se me permitem um aparte, a indústria farmacêutica está se abastecendo de uma população que não está conseguindo lidar com suas dores atualmente, e não está encontrando o devido amparo de quem deveria fazê-lo. É uma clara denúncia a essa indústria e a médicos que só medicam, não tratam. Sônia interpreta uma médica plenamente atenta às dores do povoado.
E, no filme, vemos também uma, ou mais de uma, morte encomendada. Importantíssima parte do roteiro porque, na história, nos é mostrado um grupo de homens e mulheres completamente despreocupados em matar. Neste grupo, nesta sociedade, o matar é premiado. Só que eles possuíam uma característica fundamental: eram estrangeiros. E, para eles, matar alguém daqui não um problema. É matar o outro, o que não é "dos nossos". O próprio líder dos estrangeiros diz isso aos dois brasileiros quando os recrimina: "vocês mataram os seus".
"Bacurau" é uma metáfora de um sertão nordestino abandonado. Que deveria, já de muito, não estar mais em situação tão absurda. Mostra um sertão nordestino que só é visto quando há interesses outros que não o de resguardá-lo, de dar-lhe dignidade. E, repetindo, mostra um sertão nordestino que se vê diante de uma população "estrangeira" que quer, pura e simplesmente, eliminá-lo.
Será que quem vier a assisti-lo notará a força da frase do líder do grupo estrangeiro: "vocês mataram os seus"? Essa frase é genial no contexto. Por aqui, há quem esteja entendendo todas as "Bacuraus" como o outro, como aquilo que "não é dos nossos".
Assim como o povoado, digamos não! O sertão, bem como todo o Nordeste, são o Brasil. E "Bacurau" faz muita questão de gritar isto. Chega do sertão, do nordeste, serem por si sós. Chega dos "estrangeiros" pensarem num nordeste com seu sertão como algo sem valor.
Vamos lá! Sejamos mais Bacurau! Protejamos o Nordeste! Paremos de enxergar nosso cinema como estrangeiros. Vamos agraciar também nossa produção cinematográfica. Prestigiemos "Bacurau"!
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