Entrevista com o compositor Flavinho da Juventude
Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?
Flavinho da Juventude: Lembro-me de que quando eu mexia com música, tinha alguns arrancos musicais. Comecei a sair pra noite com uns onze, doze anos de idade. Eu fazia somente umas duas posições no violão. Dali, comecei a ficar na noite e não parei mais. Fui levando a vida assim, até que senti vontade de fazer uma música.
Daniela Aragão: Qual foi sua primeira música?
Flavinho da Juventude: Com treze anos, comecei a gostar de uma menina e fiz uma canção, baseada num poema do Guilherme de Almeida. Ela se chama “Dia a dia”: “Caminhando à procura pelas estradas a ver/Dentro da noite o encanto de morrer/Não creio mais em fantasia/no sofrer/ pois eu sinto dia a dia o encanto de morrer”.
Daniela Aragão: Foi gravado?
Flavinho da Juventude: Não.
Daniela Aragão: Como é seu processo de composição?
Flavinho da Juventude: Só componho de ouvido. Eu sabia fazer só duas posições no violão, lá menor e ré maior. Então, eu fazia essas duas posições. Ficou um show. Ganhei o Festival de Linhares. I Festival da Cinec (Campanha nacional de escolas da comunidade). Foi decretado feriado aqui no bairro quando ganhei, daí então fiquei famoso.
Daniela Aragão: Apareceram novos contatos?
Flavinho da Juventude: Sim. Apareceu o Roberto Medeiros. Itamar Franco veio a Juiz de Fora participar de um comício, que aconteceu no ginásio lotado, em que comemorávamos minha vitória. Roberto perguntou as pessoas o que estava acontecendo e lhe contaram, que eu tinha ganhado um festival. Ele era presidente da Juventude Imperial. Logo depois, mandou uma mulher bonita me chamar. Fui até ela, que me contou que o Roberto estava procurando alguém para fazer parceria musical.
Daniela Aragão: E aí?
Flavinho da Juventude: Topei na hora. Me deram da Editora Abril, um livro com o Zumbi dos Palmares na capa. Fizemos o samba e ganhamos. Era o melhor samba e o Zumbi terrível.
Daniela Aragão: Qual foi o enredo da música?
Flavinho da Juventude: O Zumbi dos Palmares. A letra era assim: “Ora Zumbi, deuses do congo era Zumbi/ neste mundo está nascendo um deus negro no Quilombo dos Palmares/escravos aos milhares/cantavam, rezavam, pediam para que o neto da princesa...”. O interessante desse samba, é que o Zumbi primeiro nasce, depois luta, depois morre. Um samba didático.
Daniela Aragão: É didático por ser um samba enredo e contar uma história.
Flavinho da Juventude: Com certeza, e deu lição de negritude no morro. Ninguém sabia nada de Zumbi.
Daniela Aragão: A partir daí, começou então seu envolvimento com a escola e que nunca mais se acabou.
Flavinho da Juventude: Exatamente. No ano seguinte, ganhei outro samba, no outro também. Ganhei quatro sambas seguidos.
Daniela Aragão: Seu envolvimento com a comunidade também é forte?
Flavinho da Juventude: Sim, sempre foi. Antes eu tinha uma ala de passo marcado, a ala dos Nordes. A ala era famosa na cidade e eu fazia também locução na quadra. Saí no “Diário Mercantil”, a jornalista Cristina Brandão me entrevistou. Eu, metido a ser politizado, já falava de política. Eu dizia que a máfia queria acabar com o morro, esta era a visão que eu tinha daqueles burgueses, que frequentavam a “Juventude Imperial”.
Daniela Aragão: E além da composição de samba-enredo?
Flavinho da Juventude: Eu cantava em puteiro, no K2. Eu era o puto da noite (risos). Só lá para janeiro e fevereiro, que eu me dedicava mais intensamente a escola.
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Daniela Aragão: Como foi seu trabalho em rádio?
Flavinho da Juventude: A rádio me convidou, porque eu era meio irreverente. Comandei um programa, me ligaram até de Pernambuco. Nessa época, eu já havia composto o “Bem te vi”. Música baseada na Canção do Exílio, “ Minha terra tem pardais, bem-te-vi não canta mais”. Bem-te-vi para nós era o povo e pardais os generais. Se vi te ver não vejo mais. Eu me referia ao golpe, uma parte apresentada e a outra recolhida, na prisão. O otimismo aparecia muito sutilmente “agora é hora de abertura do alçapão”.
Daniela Aragão: Sua música não está dissociada de uma consciência social. Você foi militante?
Flavinho da Juventude: Fui muito ativo politicamente. Eu era metido a ser marxista, e o pessoal da universidade me pegou para tocar violão. Depois dali, descobri que eu era negro, eu não sabia que eu era negro.
Daniela Aragão: Quem te fez enxergar sua negritude?
Flavinho da Juventude: A universidade. Fui estudar química, mas acho que eu deveria ter cursado história. Estudei no Ensino Médio, na Escola São Sebastião, tive um professor de química que me encantou, pois ele ensinava muito bem. Daí aprendi a fazer distribuição eletrônica, eu dava aula particular do que eu aprendia, ensinava para quem tinha vontade.
Daniela Aragão: Você devia ser um dos únicos negros na universidade.
Flavinho da Juventude: Imagina como era o cenário na década de setenta? Eu era uma mosca no leite. No entanto, eu era famoso por causa da música, e com a música fui atrasando meu curso. E eu não saía da universidade.
Daniela Aragão: Você se tornou um dos famosos dinossauros da universidade (risos).
Flavinho da Juventude: Verdade. Eu era um pouco irreverente, havia em mim um desejo de anarquizar. Levei uns dez paus em física, outros dez em cálculo. Em 1986 fui jubilado. Daí fiz vestibular novamente e passei. Ganhei mais oito anos (risos).
Daniela Aragão: E com o crédito de mais quatro anos na universidade?
Flavinho da Juventude: Aproveitei as matérias que eu já tinha feito, daí fui devagarinho (risos). Em 2002 saí definitivamente da universidade. Foram vinte anos, mas não desisti. De minha turma, nenhum concluiu o curso. Cheguei até a dar aula particular de geometria plana e cálculo vetorial.
Daniela Aragão: Quais compositores te influenciaram?
Flavinho da Juventude: Chico Buarque me influenciou muito. Tinha também Noel, Cartola. No entanto, nos bares eu não cantava muito repertório de samba, mas Caetano Veloso, Milton Nascimento.
Daniela Aragão: O que te inspira para compor?
Flavinho da juventude: Os enredos que eu ganhava para compor. Estávamos acostumados a receber a bula. A gente olhava para aquilo. Claro que a mulher também sempre me inspirou.
Daniela Aragão: Como se deu a ideia do seu disco autoral?
Flavinho da Juventude: Uma senhora da Funalfa, sugeriu que eu fizesse um disco sobre a minha obra. No princípio, eu com aquela ideia de perseguição, falei que não. Mas acabei ficando com essa ideia na cabeça. A primeira vez, que tentei a Lei Murilo Mendes não passei, falaram que eu estava inaudível. O mesmo aconteceu recentemente, quando fiz o Enem. Minha pontuação geral foi boa, mas zerei redação. Conforme disseram, eu fugi do tema.
Daniela Aragão: O disco é só com composições suas?
Flavinho da Juventude: Sim. Todas as músicas que estão no disco são minhas.
Daniela Aragão: Você fez uma longa e ininterrupta temporada no Muzik não é?
Flavinho da Juventude: Foram seis anos seguidos de trabalho. Comecei e depois chamei a Sandra Portella, para dividir o espetáculo comigo. Eu me dedicava muito, sempre antes de começar eu colocava meu disquinho de vocalize para aquecer minha voz. Música sempre foi a minha vida. Eu botei para quebrar, até descaracterizei a casa, pois coloquei o samba do morro. Eu pintava o sete. Cantava Cartola, Adoniran Barbosa, Chico Buarque. Nessa época eu ainda tinha as minhas duas pernas.
Daniela Aragão: Você é diabético?
Flavinho da Juventude: Sou. Um médico do hospital João Penido me disse que me sacanearam, pois no geral quando cortam uma perna do cara, ficam de olho na outra, para não cortar.
Daniela Aragão: Você ainda compõe?
Flavinho da Juventude: Não. Fiquei muito revoltado e triste pelo abandono que me deixaram. Parei com tudo, encerrei minha carreira. Já tenho um disco e modéstia às favas, acho que está bom. Falo sobre o FMI, isso não é para qualquer um. Nunca me vendi. Falei sobre o que acredito, vi e vivi. Falo sobre a América Latina, um samba de 1982. Eu tenho muito sentimento. Minha vida eu deixo na minha obra.
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