Entrevista com o poeta e professor Edimilson de Almeida 

Daniela Aragão Daniela Aragão 9/01/2018

Daniela Aragão: Como começou a sua relação com a palavra?

Edimilson Pereira: Minha experiência com a palavra é, basicamente, fundante. Fundante no sentido de pessoa e, depois sujeito, no sentido mais técnico da expressão. A partir das experiências na infância, isso tudo no sentido do contato com a palavra oral. Vim de família de periferia urbana e ao mesmo tempo, família de área rural. São duas confluências histórico-geográficas, a periferia e as áreas rurais, em que a expressão oral era muito forte, muito rigorosa.  Meu pai, até hoje é um exímio contador de histórias. Meus avós eram narradores exímios. Tínhamos uma vizinhança que vinha das redondezas da cidade, das áreas rurais mais próximas. Todos tinham com a palavra oral, uma vivência contínua e densa, através das festividades, das cantorias, das narrativas. Para mim, o mundo chega, em parte, por meio dessa palavra falada, com a qual você tem que estar muito atento na característica, que é a ambiguidade. Ao mesmo tempo em que ela nos ajuda a recuperar os fios da memória, na sua forma de expressão tão imediata e pragmática, ela acaba dissolvendo essa própria memória. Você é obrigado a desenvolver uma certa habilidade com agilidade, com essa palavra oral. Então, acho que minha formação fundamental de leitor do mundo, vem objetivamente dessa experiência da área geográfica que nasci. Da confluência desses dois mundos, da periferia urbana e as oralidades que chegaram por meio da família.

Daniela Aragão: O que te despertou a palavra escrita?

Edimilson Pereira: Isso é uma questão interessante. Primeiramente, gostaria de fazer uma homenagem à escola pública brasileira, quase sempre tão massacrada. Muitas vezes desvalorizada, até por escritores que acham que a educação vive um processo de falência. Minha experiência com a palavra escrita se deve, fundamentalmente, a minha relação com as professoras, desde os meus primeiros anos na escola. Morei em Petrópolis, durante dois anos, e ingressei no Grupo Escolar Rui Barbosa. Nesta época muito bem organizado. Tinha um corpo docente muito competente. Minha professora chamava-se Ângela, tinha por hábito toda semana solicitar aos alunos que fizessem uma redação. Havia um dado importante, não só se escrevia, como se lia os textos. Hoje uma prática utilizada nas oficinas literárias. Isso foi me dando um gosto muito grande, pois eu ouvia o que eu tinha em casa, que era a experiência oral, mas me dava o aprendizado da técnica da escrita. Ao final deste ano de 1972, voltei para Juiz de Fora com a minha família. Ganhei desta professora meu primeiro livro, “amigos felizes”, guardo-o até hoje com um carinho enorme. Nunca mais a encontrei, mas tenho por ela uma admiração e um agradecimento sem par. Com sete para oito anos, eu já possuía uma experiência concreta, do que era usar bem a palavra na sua expressão oral, entendia o quanto era importante também o domínio de alguma técnica de escrita. Eu gostava de escrever e ler em voz alta.

Daniela Aragão: Já havia a consciência da palavra?

Edimilson Pereira: Vejo isso hoje à distância, mas na época sentia isso como algo que me agradava. Eu gostava de escrever e ler em voz alta. Foi nesse período, na segunda série, especialmente, com a professora Ângela, que me despertei para a leitura e escrita. Com o passar dos anos, essa habilidade amadureceu e se ampliou. Com o transcorrer da vida escolar, minha experiência mais agradável se dava quando as professoras mandavam fazer uma composição nos finais de semana. Eu aguardava a segunda feira para entregar a composição escrita.

Daniela Aragão: Interessante esse gosto pela escrita vir desde muito pequeno.

Edimilson Pereira: Para os outros colegas era horrível e para mim muito agradável. Eu aguardava a chegada da segunda feira para trazer a composição. Acho fundamental que reconheçamos que apesar de todos os problemas que enfrenta a escola pública brasileira, há trabalhos muito importantes para a formação de leitores e escritores.

Daniela Aragão: O gosto pela palavra escrita veio então pela escola.

Edimilson Pereira: A escolaridade de meus pais era muito restrita, eles vieram de zona rural.  Minha mãe estudou até a terceira série do ensino fundamental e meu pai até a quarta. Depois eles tiveram que se entregar ao trabalho e não puderam continuar os estudos. Embora eles tenham se esforçado a vida inteira para que os filhos estudassem. Eles reconheciam o quanto a escola era importante e nos deram a oportunidade do estudo que seguimos adiante de maneira bem consistente.  Por isso que, como escritor, não crio muitas barreiras entre palavra escrita e palavra falada. Minha vida inteira se deu na confluência destes dois registros. Mais tarde, com os trabalhos de pesquisa de campo, isso veio a se acentuar. Acabei criando uma consciência crítica mais refinada em relação a essa temática. Há teóricos que trabalham numa lógica de separação entre ambas, enquanto trabalho numa linha de cada vez maior aproximação entre elas.

Daniela Aragão: E as primeiras leituras. Os autores que te formaram.

Edimilson Pereira: Hoje há tendências que falam da importância de se firmar o valor da leitura no universo da criança como um exercício de prazer e não de obrigação. Não sei se por obra do acaso, tive professores muito bons que me introduziram experiências lúdicas com a leitura. Tive professores excelentes que trabalhavam a leitura, antes de mais nada, como descoberta de mundo. Nunca li por obrigação. Recordo-me que já de volta a Juiz de Fora, por volta de 1973, eu fazia a terceira série. Lembro-me na época um livro que me impactou muito, de Luiz Jardim, a história do Paul Eluard. Este livro para mim é decisivo, pois é uma descoberta da escrita  como uma experiência de narração de dados, de fatos, de peripécias. Dentro do mistério, do enigma a ideia do caminho iniciático. Li este livro com um prazer imenso. Curiosamente, voltei a reencontrar este livro no final dos anos oitenta, numa situação muito peculiar. Eu já fazia pesquisa de campo e estava numa cidade chamada Jequitibá, próxima de Sete Lagoas. Há lugarejos pequenos, pouca gente. Nos povoados que visitei, quarenta a cinquenta pessoas no máximo. Havia uma conversa de que tinha um senhor no povoado que tinha um livro sagrado. Ele era mestre da “Folia de Reis” e colocava neste livro cantos e palavras que ninguém sabia que livro que era.  Depois de um bom tempo visitando este povoado, fomos pelas mãos de um amigo na casa do senhor Geraldo. Um certo dia ele resolveu nos mostrar o livro, que estava bastante desgastado. Estava lá a história do Paul Eluard, realmente, uma narrativa que tem algum significado importante no processo de formação dele. Ela une essa ponta da infância, que é o processo de descoberta lúdica. Uma descoberta lúdica através do Luiz Jardim. Mais tarde encontro este mesmo texto numa condição diferente, de texto sacralizado. Minha ótica de investigador e pesquisador me trouxe uma visão mais crítica e distanciada da literatura. Então esses fatos todos mostram o quanto é importante neste momento da infância o contato com a escrita e a palavra para ampliar os horizontes de curiosidades. Você se torna mais atento à experiência do mundo através da palavra. Você tem a oportunidade de estar numa escola que incentive a escrita, a leitura. A palavra é um registro fundamental de contato com o mundo.

Daniela Aragão: Pegando então esse gancho, você é poeta e o germinar da poesia em você brotou muito cedo?

Edimilson Pereira: Sim, de novo a escola tem uma importância capital em minha formação enquanto teórico e poeta. Quarta série aqui em Juiz de Fora, tínhamos uma professora excelente que dava exercícios de redação. Ela se chamava Ione Maria Barata de Carvalho, ela costumava fazer exercícios semanais de redação. De vez em quando ela trazia os poemas e deixava que produzíssemos os textos de acordo com a forma dos poemas. Isso me trouxe o contato com um tipo de texto que não era prosa. Claro que não deu tempo para produzir poemas na ocasião, até porque tínhamos grande dificuldade. A ideia de mudar a forma do texto me chegou deste período.

Daniela Aragão: Uma iniciação literária que te possibilitou expansões.

Edimilson Pereira: Nos anos seguintes, quinta e sexta série, estudei com a professora Maria das Graças Fonseca. Tornou-se uma amiga e é uma professora a qual devo muito.  Ela atuou no momento em que se tinha feito uma grande reforma na língua portuguesa no Brasil, introduzindo o conceito de Comunicação e expressão. Havia muitos exercícios estruturais, repetições de estruturas, orações e vocabulário. Para um professor que precisava seguir aquelas normas, o estudo de português era muito mecânico e para os alunos, muito cansativo. Ela superou, exatamente, isso. Era uma pessoa, extremamente, comunicativa e que conversava muito com os alunos. Ela nos trazia bons livros de leitura. Comecei a ler Machado de Assis com ela, na quinta série, e José de Alencar. A introdução aos bons da literatura brasileira que me chegaram através dela. Um detalhe importante no modo como ela trabalhava, não só nos acompanhava na leitura dos livros, mas sempre estabelecia depois discussões e análises. Discutíamos sobre os livros e dávamos parecer e análises sobre as obras. Não era feito como um exercício mecânico para ser, posteriormente, desprezado. Fazíamos as rodas de debates, era um momento em que passávamos da condição de leitor a analista da obra lida. Isso numa escola pública do Bonfim, um bairro periférico. Esta professora foi um referencial, juntamente com as outras que vieram compondo uma trajetória no sentido de formadoras de bons leitores. 

Daniela Aragão: Os escritos começaram a aflorar?

Edimilson Pereira: Me lembro bem de que neste momento de quinta série comecei a rascunhar meus primeiros poemas. Eram muito infantis e vinham no compromisso que eu havia estabelecido comigo, que era escrever um poema por dia. Eu tinha um caderno e no final do ano chegava a 365 poemas

Daniela Aragão: Você se impunha esta disciplina diária de escrita?

Edimilson Pereira: Não era impor, mas a necessidade de escrita era tão grande. Eram exercícios ingênuos. Eu acreditar que estava fazendo poesia era algo muito estimulante. A Maria das Graças, deve ter lido uns três ou quatro cadernos meus ao longo do tempo, coitada (risos). Eu levava para ela e de maneira muito atenciosa lia os cadernos e comentava. Preciso encontrar nos meus alfarrábios os bilhetes que ela deixava no final dos cadernos. Eram sempre palavras de reconhecimento e estímulo.

Daniela Aragão: Te indicava leituras?

Edimilson Pereira: Sim, indicava leituras, comentários. Fazia aquele papel de orientador. O aprendizado que vemos nas oficinas literárias. Muito interessante. Sempre recomendava: “- Leia mais e escreva mais”. A escrita é um exercício. Me recordo de que mais tarde, eu já tinha saído do ginásio e estava cursando o antigo científico. Na época eu estava prestando o serviço militar de que não gostava. Eu aproveitava o período em que ficava no quartel para escrever. Eu datilografava, usava papel carbono. Na época cheguei a escrever um romance. Depois ele se perdeu no meio da literatura. A Maria das Graças leu esse romance. Foi uma pessoa muito importante, pois no espaço da escola essa professora abriu espaço para que se abrissem as regras.

Daniela Aragão: Você é o primeiro poeta que fala bem da escola.

Edimilson Pereira: Não tive traumas na escola. Minha experiência escolar foi muito elucidativa, muito rica. As primeiras séries, consideradas as mais complicadas de adaptação, eu não vivi esse problema, pois eu gostava de ir para a escola. Pode ter sido sorte também, tive educadores excelentes, muitos são meus amigos até hoje. Claro que tenho uma visão crítica dela e sei o quanto é problemático, isso não só no Brasil, mas em todo mundo. Como qualquer instituição ela pode ser, extremamente, repressora e às vezes é. Tive exemplo de professores que nos anos setenta e oitenta fizeram trabalhos extraordinários de educação. Minha formação literária não teria sido despertada sem a escola. Depois todos os processos que vieram mais tarde são só uma continuação de um percurso anterior.

Daniela Aragão: No seu caso não houve a cisão entre a academia e a criação. Fernando Fiorese declarou-me que se pudesse teria dedicado somente à sua criação literária ao invés de dividir o ofício com as atividades acadêmicas. Muitos dizem que a única saída do poeta é ser professor.

Edimilson Pereira: As experiências individuais é que vão demarcando a maneira como criamos as relações com as instituições e o trabalho. No meu caso, os conflitos que vivi em relação à escola e o meio acadêmico, são de natureza ideológica. Às vezes há modelos de educação com os quais eu discordo. O sistema universitário dentro da extrema burocratização pela qual tem passado nos últimos anos. Claro que não preciso ser escritor para discordar disso. A prática diária inclusive vai usurpando o tempo da atuação docente, da investigação, da pesquisa. Tirando esses aspectos, penso que venho de uma família a qual tínhamos dificuldades muito grandes. As marcas pessoais são fundamentais, tive uma mãe, que quando olhava as dificuldades, ao invés de contornar, entendia que se não resolvesse, depois não andava. Então ela nunca foi de adiar problemas ou criar subterfúgios. Sempre foi de cara nos enfrentamentos. Então fui direcionado para essa lógica, onde há problemas você tem que passar por eles e tentar achar soluções que sejam de diferentes modos. Curto prazo, médio e longo prazo. A própria dinâmica da convivência irá te demonstrar isso. O fato é que você tem que criar linguagem e comportamento para lidar com a vida. Devo isso muito a minha mãe.

Daniela Aragão: Você aprendeu cedo a aliar a arte, a educação e a práxis da vida...

Edimilson Pereira: As pessoas possuem muito essa divisão entre o mundo institucional e o mundo de fora. Mais tarde, descobri em minha pesquisa de campo, que tem escola para a vida e escola da vida. Nisso há uma divisão muito clara. No meu caso, a escola da vida e a escola do governo parecem que possuem pontos de contato, a zona de fricção. Exatamente, nesse entremeio que minha formação foi se dando. Eu tinha que criar um modelo que a intercessão entre esses dois mundos fosse o mais importante. Então sempre vivi na intercessão. Nesse sentido, quando cheguei à universidade, nunca aconteceu a sensação de que a formação acadêmica bloqueou o processo criativo. Havia processos acadêmicos que me ajudavam na criação e vice versa. No mínimo uma certa liberdade que eu experimentava na vida criativa, foi pouco a pouco, de certa maneira, engendrando na minha vida acadêmica. Então, vejo com muita liberdade no mundo acadêmico uma disciplina grande no mundo da criação.

Daniela Aragão; Você é desdobrável em sua versatilidade. É pesquisador na área de antropologia, poeta, professor de literatura. Como é que se deu isso? Você estreia primeiro como poeta ou pesquisador, ou as atividades foram se dando simultaneamente?

Edimilson Pereira: Essas áreas, de certo modo, foram se organizando passo a passo, simultaneamente. Hoje analiso racionalmente, nunca gosto de pensar o mundo como uma fórmula resolvida. Há teóricos que trabalham isso de forma sofisticada. Prefiro citar Camões, “o que resta da mudança é a mudança”. Você tem um mundo em funcionamento, que está em constante processo de transformação, sendo que em muitos aspectos essa transformação a gente já conhece.  Tenho como uma intuição e fui desenvolvendo minha formação de escritor por um lado, o processo criativo e o de educador por outro.  Um processo mais pedagógico de investigador da área de ciências sociais, que exige uma disciplina muito grande no processo investigativo. Depois na atuação de docente, em que é preciso possuir certa disciplina, também. Fui percebendo que essas áreas todas em determinado momento, solicitam que eu seja ao mesmo tempo rigoroso, específico, pontual, mas que não seja capaz de perder a capacidade inventiva, investigativa. Está muito ligado a uma vivência num ambiente barroco, na confluência dos contrários. Então, nunca consegui fazer o professor brigar com o investigador, nem o poeta brigar com o professor. Eles nunca digladiaram entre si, sempre conviveram. Um exemplo claro disso, para mim, se deu quando eu fazia o trabalho de pesquisa de campo na comunidade negra dos Arturos. Era um trabalho explicitamente antropológico. Tinha o rigor da análise antropológica. Nesta época fiz o livro que mais gosto “Negras raízes mineiras dos Arturos”.

Daniela Aragão: A pesquisa orgânica te instigou a mover o poeta.

Edimilson de Almeida: Exatamente. Muitas vezes, hora de perceber certos aspectos na vivência do ritual dos Arturos, o rigor antropológico não funcionava para mim, mas a percepção e intuição poética ajudaram. Em alguns poemas que estão lá, há certas construções de linguagem, uso de material etnográfico, que são fruto da experiência do antropólogo, não do poeta. Nesse aspecto, tenho tentado dentro do possível partir do uso da diversidade das personas, o poeta, o educador, o investigador, o professor, minha busca no sentido de criar uma linguagem que seja factível para todos eles, que possa ser intercambiada. Uma ideia que o Glissant traça em sua “Poética da diversidade”. Trabalho é sempre prazeroso.

Daniela Aragão: Você pesquisa a questão negra muito antes dela entrar em ebulição. Como você vê essa insurgência?

Edimilson Pereira: Não é que eu estudo antes da ebulição. Comecei a investigar essa temática nos anos oitenta, no trabalho que desenvolvia com a professora Núbia. Era um trabalho de linguística e antropologia e quando pensávamos como uma longa tradição dos estudos afro-brasileiros. Artur Ramos. Em 1988 publicamos nossa primeira pesquisa sobre afrodescendência e este ano coincide com a comemoração da Fundação Cultural Palmares, um marco histórico. Isso é um dado interessante, que estava já na constituição, dar reconhecimento às comunidades negras. Daí para adiante as décadas seguintes, foram crescendo os interesses por essas temáticas entre pesquisadores de várias áreas. Com a edição da Lei 10139 todo esse caminho ganha um viés político pedagógico. Os reflexos são imediatos Cursos são criados com recursos federais, processos de atualização de professores nessa área de conhecimento.

É interessante, pois se teve um interesse governamental, que nunca se viu antes neste país. Para o nosso trabalho de investigação, foi um período muito fértil. Esse material passou a transitar tanto na área acadêmica, quanto pedagógica. Esse terreno está muito consolidado, há uma geração jovem de alunos na faixa de 16 a 18 anos, que foi formada nesse pensamento da diversidade. A importância que as culturas afrodiaspóricas  tem para a cultura brasileira. Conseguem ver um certo Brasil afrodescendente de um modo muito diferente das gerações anteriores. Uma geração que mesmo na sua experiência estética, na música, teatro, literatura, poesia. Conseguem ver um Brasil diferente, não como restos de indivíduos que a escravidão colocou aqui. Não obstante, como indivíduos escravizados que a escravidão colocou aqui, civilizaram isso aqui. Isso muda muito a maneira de relacionar. Essas contradições todas em que o país vai se fazendo, entre um retrocesso muito grande e um avanço. O que se deu e o que está consolidado. Nessa hora se torna muito importante que os projetos de pesquisa sejam mantidos. A cada processo de investigação que você faz, novas janelas vão surgindo.

Nossa necessidade de compromisso também tem que surgir. É um trabalho que me enriquece muito. Estou sempre investigando alguma coisa, publicando algo. O livro “Poéticas da oralidade” é fruto de um trabalho de dez anos. Escrevi mais de uma vez, ampliei. Ele agora traz uma análise crítica dessa oralidade na análise afrodescendente, em Minas Gerais, no Congado. Uma antologia densa desse material que tem que ser colocada em circulação. Paralelamente, a esse processo de investigação.

Daniela Aragão: Sua poesia tem sido bastante estudada. Você tem acompanhado?

Edimilson Pereira: Na medida do possível. Falo da importância do ensino no Brasil, em minha experiência de cidadão e escritor. Devo muito a universidade, a professores e a estudantes a consolidação de certa linha de interpretação da minha obra. Na medida em que esses poemas vão para os programas de pós-graduação, entram nos processos de seleção, os alunos leem e produzem de alguma forma, análises sobre essas obras. São análises acadêmicas, com teorias que vêm do mundo acadêmico, mas que criam um foco específico para essa obra. 

Daniela Aragão: Isso é interessante para você?

Edimilson de Almeida: Muito. Nas teses e dissertações, o investigador se deteve por um tempo longo sobre o que escrevi. Exigência do universo acadêmico. Meu texto foi colocado em diálogo com outros textos, ou poéticos, ou teóricos. Isso vai gerar um texto que já não é mais meu, é uma criação de quem faz a análise. A partir de um discurso com o outro discurso você tece um campo de análise muito amplo. A minha obra na verdade tende a crescer, não porque seja uma obra fundamental, mas porque junto com outras obras, nesse diálogo, elas criam um campo de discussão que é fundamental. Acho muito instigante, uma linha muito específica de análise, de longa duração. São em geral textos longos, ensaios, artigos.  Vão formando o que penso ser uma espécie de sobrevida do texto poético. São leituras as quais, às vezes, as pessoas vão ter acesso antes da minha obra.  Este é um campo de experiência que vejo com muito agrado, leio as interpretações, às vezes, concordo com algumas, discordo de outras. Leio como teórico e não como poeta. Sou capaz de discordar de uma análise teórica, mas não de uma interpretação livre do poema. É no sentido de distanciamento, não de vigilância. Acho que a obra está disponível e tem que ser livre, interpretada. É para isso que escrevo e tenho uma proposição. Esse espaço acadêmico tem dado uma divulgação da minha obra que considero fundamental, que se complementa com a divulgação que ocorre fora da universidade. Aquele que pede um livro emprestado, um desconhecido que escreve independente. Uma rede totalmente aleatória, que ao longo desses anos vem fazendo com que minha obra seja difundida. Não em larga escala, a escala é pequena, mas contínua. Essa continuidade ao longo do tempo me dá uma densidade interessante, me agrada muito.  Sou de processos de longo prazo, não tenho pressa, as coisas vêm se fazendo. Entre acertos, tropeços. Um mapa que vai se fazendo. No final das contas nesse processo de divulgação acadêmica, aliado a recepção aleatória, para mim são três décadas de vivência de poesia.

Daniela Aragão: Já aconteceu de sua parte uma sensação de espanto ou profundo encantamento e surpresa diante de uma recepção a algum poema seu?

Edimilson Pereira: Isso acontece, no meu caso é até muito comum, pois circulo no mundo acadêmico. Toda essa década de desenvolvimento das temáticas afrodescendentes, um viés da minha obra nessa temática, tem sido muito utilizado nos projetos de pesquisa. Às vezes, em sites de busca, faço levantamentos e descubro uma série de poemas meus na área da educação. Os poemas estão lá e as pessoas trabalham com eles de diferentes maneiras, como epígrafes, citações.  Muita referência etnográfica do meu trabalho de afrodescendência, em que relaciono poesia com questão social, política. São múltiplas leituras que formam um cenário bastante ampliado. Traduções também permitem isso

Daniela Aragão: Você fez pós-doutorado na Suíça. Você é traduzido lá fora?

Edimilson Pereira: Pelo que posso levantar as traduções são muito pontuais. Nem sempre acompanho as traduções Tenho um trabalho mais próximo, desenvolvido pela Prisca, desde que temos uma vida em família. Ela é uma das grandes divulgadoras de minha obra fora. Ela traduziu muita coisa para o Italiano. Ela tem sido uma divulgadora contínua de minha obra e até dos demais poetas da D’Lira. Gera um conjunto de textos bastante significativo.

Outro tradutor que é meu amigo de muitos anos é o poeta americano Steve White, com quem tive bastante contato, até pessoal nos anos noventa.  Ele morava em Santa Catarina. Nós nos encontrávamos muito. Ele fez muitas traduções de poemas meus para o inglês, gerou a edição de um livro de Falas que é bilíngue. São trabalhos que acompanho. Espaços em antologia na Argentina. De qualquer modo, minha obra é uma teia com vários pontos luminosos. Isso me ajuda a ter uma visão de que o fundamental é ter um percurso que vai de encontro à ideia das diversidades.

Daniela Aragão: E a escrita destinada ao público infantil?

Edimilson Pereira: Tenho um primeiro livro chamado “Cada bicho no seu canto”. Eu tinha uma série de textos e o Fernando (dono da livraria Arco-íris) queria fazer uma experiência de publicação. Resultou numa experiência interessante, pois na época ele era uma espécie de produtor do grupo musical chamado “Cantares”, era um quarteto muito bonito. Elas se interessaram em produzir um livro infantil e um dos poemas do meu livro foi escolhido por elas para compor o repertório que estava sendo gravado. Foi meu primeiro trabalho com literatura infantil, no final dos anos oitenta. Retomei mais adiante e de forma mais intensa em 2004. Em um contrato com a editora Paulinas saiu o livro. A literatura infantil para mim é importante e tento seguir um ritmo diferente dos autores, que são especificamente da área. Há um público que se renova sempre, há muitas feiras, seminários. Os autores possuem uma produção contínua. Eu trabalho na área de literatura infantil, mas a minha demanda em relação a esse universo é com um pé no freio. Quero fazer com a literatura infantil o mesmo percurso que elaborei para a literatura adulta, lenta, progressiva, sobretudo com um trabalho de linguagem, de pesquisa e de investigação, em que muitas vezes a pressa pode limitar.

Daniela Aragão: Você é disciplinado para escrever poesia? Você guarda muito tempo um poema?

Edimilson Pereira: De certo modo, acho que sou um pouco disciplinado, pois já há algum tempo venho desenhando para mim a ideia de construir uma paisagem poética. Qualquer paisagem natural tem que ser feita de diferenças, surpresas, abismos, planícies. Minha poética é uma grande paisagem, que vou compondo para gerar essa diversidade, é preciso ter certa noção de disciplina. Minha poética é dividida em quatro faces, tenho quatro vertentes com quatro modalidades de linguagem diferentes.

Daniela Aragão: São desdobramentos?

Edimilson Pereira: Sim, trata-se de desdobramentos, no entanto não trabalho com a ideia de personas, de Fernando Pessoa. Há uma vertente que irá explorar o universo da afrodescendência, que vai gerar um volume, José Osório Blues. Tem uma área de investigação enorme, que vai desde o trabalho com a musicalidade afrodiaspórica, alguns trabalhos de antropologia que fiz em campo, com a visão das afrodescendências rurais e urbanas. Há outra vertente em que procuro trabalhar, que está em “lugares Ares”, a dicção poética que está ali, mais para as questões do cotidiano. Um criação de vertente claramente Drummondiana, fui leitor de Drummond durante longo tempo e ainda sou. Trabalho com o cotidiano a partir de uma visão irônica, com um humor desgastante da experiência humana. Aonde visito muito essa memória de um Barroco mineiro. Não na perspectiva de quem foi elite no barroco mineiro, mas de quem sempre  foi subalterno. Drummond tem uma série de poemas sobre as cidades barrocas mineiras. Fiz uma série numa mesma linhagem, mas a perspectiva é muito diferenciada. Há outra vertente, presente no terceiro volume, que é “A casa da palavra”. Nesta exploro muito as expectativas de oralidades e ritualidades da cultura brasileira. Envolve desde a cultura afro, indígena e a cultura popular em geral.  Faço muitas experiências com poemas em prosa. Por fim uma quarta vertente, que se intitula “As coisas arcas”. Trata-se de uma clara preocupação de tratar da linguagem como algo obscuro. Quase uma perspectiva filosófica para entender a obscuridade.

Daniela Aragão: Estudando a teoria do constelado de Quessio Quesado, em Pessoa. Você formaria essas paisagens na composição de um arquipélago?

Edimilson Pereira: A minha perspectiva tem diferentes dicções poéticas. Pelo processo de vivência, acho que estou abrindo uma quinta vertente, que consiste numa modalidade de linguagem de reaproveitamento da poesia expressionista alemã. Isso vai aparecer um pouco nos próximos livros.

Daniela Aragão: Você começou a escrever poemas já com o projeto da abertura de vertentes?

Edimilson Pereira: Sempre quis trabalhar com as diversidades. Meu primeiro livro faz parte da segunda corrente, tem “Lugares Ares”, uma linguagem de mais humor e ironia do cotidiano. Meu segundo livro foi “Falas”, que é uma exploração da herança Iorubá numa perspectiva poética. Então já estava lá, a vertente da diáspora. Meus dois primeiros livros já apontavam para diferentes vertentes. Tinha feito uma publicação em 1985 e outra em 87. Na verdade elas apontavam para o mesmo ponto de partida, que é o sujeito histórico, poeta, mas que em termos de resolução de linguagem são completamente diferentes.   Com o passar dos anos isso foi se avolumando e fui tomando consciência disso. Quando me propus a reunir a obra em 2003, eu tinha claramente a visão de quatro perspectivas desenhadas.

Daniela Aragão: Estes quatro convivem sempre com você?

Edimilson Pereira: Convivem sem problema, tanto que escrevo os livros, simultaneamente. Nos três novos livros, “Maginô” é um livro que vai se integrar com certeza a corrente do “Lugares ares”, a questão da memória, da ironia, do cotidiano, do passado familiar. Já o “Guelvas” e o “Relva” estão abrindo uma vertente nova. Uma linguagem mais expressionista que explora a obscuridade da linguagem poética.

Daniela Aragão: É o criador mais desdobrável que já conheci.

Edimilson Pereira: Agora estou fechando um livro que irá para a vertente do José Osório Blues. As heranças iorubas. Estou fazendo um trabalho de texto poético praticamente construído. Estes poemas irão sair ao lado de imagens de um artista plástico de Belo Horizonte, que se chama Sérgio Moreira. Estamos retomando o que foi experiência do Emai Cesaire, conjugar a produção imagética com a produção textual. Esse cenário vai se desenhando, e como é uma paisagem se move o tempo inteiro. A lógica que une todas essas faces é o movimento, e cada movimento se dá num sentido diferenciado. Movem-se, simultaneamente, sem conflitos. O próximo livro a ser lançado se chama E, que pode ser de Edimilson, ensaio e exu. Ele vai para a primeira vertente, de investigação das temáticas afrodiaspóricas no Brasil. Paralelamente a este livro, estou com outro em curso, que faz parte desta vertente expressionista, que abri com “Guelvas” e “Relvas”. Isso dá uma ideia da produção poética em curso. Do ponto de vista do ensaio, tento trabalhar um artigo que analisa Exu como uma representação estética. Desde a década de oitenta tenho um trabalho muito grande com histórias orais que foram coletadas no interior do estado. Era época em que eu trabalhava em parceria com a Núbia. Reuni essas histórias, acompanhadas de análises antropológicas e sociológicas. A minha preocupação agora é começar a digitalizar este material. Como não dará para fazer a publicação das histórias com a respectiva análise, como gostaríamos de fazer. Uma parte deste trabalho foi feita no livro “Mundo encaixado”. O repertório de histórias e tão rico e tão grande, que minha prioridade é publicar, como se fosse um livro da carochinha. Grande em todos os sentidos, volume e histórias, diversidade e histórias,

Daniela Aragão: O que é a literatura para a sua vida?

Edimilson Pereira: Neste livro, “O pensamento do tremor”, Glissant diz algo que tem muito a ver com meu modo de pensar e ver o mundo: “O contraponto ativo da mundialização não é a particularização surda nem o fechamento em si, mas a mundialidade, ou sentido, ou poética, da diversidade solidária. A arte da tradução é uma de suas oficinas. Cada lugar nos é soberano e aberto. Por mais irredutível e sólida que ela seja ou sinta, a particularidade ou identidade é hoje uma tradução primeiramente.  Esses campos deslocam sem descontinuar seus contrários, de onde as intuições se propagam, as linguagens ressurgem. As Poéticas da Relação são encantadas por todas as línguas, sem negligenciar a mais recuada, quer ela emita em silêncio ou devolva apenas um eco”.

ACESSA.com - Entrevista com o poeta e professor Edimilson de Almeida

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