Essa cidade me atravessa
Absorvo o mundo através de música. Quando estou conversando com alguém, ouvindo uma palestra ou alguma conversa de outrem trazida pelo ar, quase sempre surge algum verso de alguma canção que contém aquela palavra.
Troquei o cenário monótono da academia de musculação pela matéria viva das calçadas, da fumaça dos carros, da sinuosidade dos morros, da força das ondas, do calor das areias, do cheiro de maresia, da sensualidade dos corpos, da fome dos corpos, da curvatura dos arcos. Da beleza das palmeiras, do sabor da água de coco, da pulsação criativa, dos sotaques, da inclinação para o espetáculo, do ritmo acelerado, dos rompantes contemplativos, das muitas cores, do humor, da ousadia, da alegria, da sedução e do espanto.
Em nosso cancioneiro não falta música que preencha os mais diversos estados de alma. Desde que me mudei para o Rio de Janeiro, me invadem os versos de O nome da cidade, belíssima canção feita por Caetano Veloso, inspirado na personagem Macabéa, do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Na madrugada de ontem bateu uma vontade de tocá-la para o meu amigo Marcelo, companheiro de apê carioquíssimo. Cantei verso por verso, prolongando cada nota, cada palavra, como se me justificasse através da poesia de Caetano: “Cheguei ao nome da cidade/ Não à cidade mesma espessa/ Rio que não é rio; imagens/ Essa cidade me atravessa/ Será que tudo me interessa/ Cada coisa é demais e tantas/ Quais eram minhas esperanças?/ O que é ameaça e o que é promessa/ Ruas voando sobre ruas/ Letras demais, tudo mentindo/ O Redentor, que horror! Que lindo!/ Meninos maus mulheres nuas/ A gente chega sem chegar/ Não há meada, é só o fio/ Será que pra meu próprio rio/ Esse rio é mais mar que o mar?”
Sinto-me como uma Macabéa do alto das Gerais que, embora tenha ouvido bem mais que o rádio-relógio, mal consegue dissimular a ebulição de sentimentos. Essa cidade me atravessa em sua imensidão, suas ofertas, seus contrastes, seu fascínio. Terra ensolarada de misturas: “Eu quero te mostrar o Rio de Janeiro em que o Corcovado está de costas”, disse meu querido amigo carioca, o estudioso de música e professor Alberto Moby. Flano, me enfronho, participo, mas consciente da falta de traquejo, que espero vir com o tempo, rápido. Domingo passado aprovei minha performance de “não Macabéa”, ao me enturmar rápido no churrasco do meu outro amigo músico e poeta, Rogério Batalha. Este já me presenteou com um ótimo cd de composições suas em parceria com Moacyr Luz e Du Basconça, gravado ao vivo no Centro de Referência da Música Carioca.
Em compensação, fui intensamente Macabéa quando recuei diante da levada sedutora de um “menino-homem do rio”, que desejo desde os tempos de vivência nas gerais. Uma menina-mulher tonta em meio à poesia do instante, lia-absorvia suas palavras, de cabeça baixa, como se pudesse medir o desmedido: “Te acho lindo, você é muito interessante, mas tô com medo”. No fundo só rindo de mim, dele, de nós. Faltou-me “jeito de corpo”, “ah bruta flor do querer”.
Vou buscando na memória outras canções que também descrevem esses múltiplos Rios. Idilicamente sereno e convidativo como nos versos de Antônio Maria: “Vento do mar no meu rosto/ E o sol a queimar, queimar/ Calçada cheia de gente a passar, e a me ver passar/ Rio de Janeiro, gosto de você/ gosto de quem gosta/ Deste céu, desse mar/ Dessa gente feliz”. Sensualmente Zona Sul como canta Marina Lima, sua eterna musa: “O hotel Marina quando acende/ Não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor/ Os inocentes do Leblon/ Esses não sabem de você”. Levemente Bossa Nova, como exalta Vinícius de Moraes: “Ela é carioca/ Ela é carioca/ Basta o jeitinho dela andar/ Nem ninguém tem carinho assim para dar/ Eu vejo na cor dos seus olhos/ As noites do Rio ao luar”.
Liricamente suburbano como entoa Chico Buarque: “Lá não tem moças douradas/ Expostas, andam nuas/ Pelas quebradas teus exus/ Não tem turistas/ Não sai foto nas revistas/ Lá tem Jesus/ E está de costas/ Fala, Maré/ Fala, Madureira/ Fala, Pavuna/ Fala, Inhaúma/ Cordovil, Pilares/ Espalha tua voz nos arredores/ Carrega tua cruz/ E os teus tambores”. Poeticamente sublime como descreve também Chico Buarque: “Dois irmãos, quando vai alta madrugada/ E a teus pés vão-se encostar os instrumentos/ Aprendi a respeitar tua prumada/ E desconfiar do teu silêncio/ Penso ouvir a pulsação atravessada/ Do que foi e o que será noutra existência/ É assim como se a rocha dilatada/Fosse uma concentração de tempos”.
Festivo como vibra Gilberto Gil: “O Rio de Janeiro/ continua lindo/ O Rio de Janeiro/ Continua sendo/ O Rio de Janeiro/ Fevereiro e Março/ Alô, alô, Realengo/ Aquele abraço!/ Alô torcida do flamengo/ Aquele abraço.”. Luminosamente fascinante como evoca Adriana Calcanhotto, ex Macabéa gaúcha confessa: “Cariocas são bonitos/ Cariocas são bacanas/ Cariocas são sacanas/ Cariocas são dourados/ Cariocas são modernos/ Cariocas são espertos/ Cariocas são diretos/ Cariocas não gostam de dias nublados.” Erótica e poeticamente marginal como expõe Cazuza: Você nunca varou a Duvivier às cinco/ Nem levou um susto saindo do Val Improviso/ Era quase meio-dia no lado escuro da vida/ Nunca viu Lou Reed Walking on the outside/ Nem Melodia transvirado/ Rezando pelo Estácio/ Nunca viu Allen Ginsberg/ Pagando michê na Alasca”. Romântico como revela Luiz Melodia “O Estácio acalma o sentido dos erros que eu faço/ Trago, não traço, faço, não caço/ O amor da morena maldita do Largo do Estácio”.
Aconchegante como quer Aldir Blanc: “Só fico à vontade/ Na minha cidade/ Volto sempre a ela/Feito criminosa/ Doce e calorosa/ A minha história/ Escorre aqui/ Há quem não se importe/ Mas a Zona Norte/ É feito cigana lendo a minha sorte”. Malandramente carioca como suínga Seu Jorge: “O Rio de Janeiro é a capital/ Eu vi a nega no Morro da Mangueira/ Vi a loura na praia de bobeira/ Mas a mina da Vila Isabel é uma mulher sensacional”. Cantar o Rio ainda vai me render muitas e muitas páginas, então, já é.
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