Noite fria. Passos apertados. O som do sapato sobre a escada denuncia a presença soturna de quem entra no corredor, antes mesmo das luzes internas acenderem.
Ao som da valsa, as chaves se contorcionam e o refugo é trancado. Das escutas de sorrisos e gargalhadas ao burburinho, o frenesi! Música de cabaré misturada com odores de essências de sândalo, canela e vinho tinto para acobertar encontros clandestinos.
— Será amante?
— Ou namorado?
E por despeito ou hipocrisia, os bochichos das línguas maldizem a estranha presença de estranhos no apart ao lado.
Cala o apogeu. As paredes ficam mudas. A imaginação flui:
— O que está acontecendo? Preliminares?
As mãos curiosas se apoiam sobre o basculante da cozinha para vislumbrar silhuetas ardentes misturando-se no blindex embaçado.
E o suspense dilacera a mente:
— Dizem que eles são de uma promiscuidade só! Saem à caçada perdida por corpos órfãos.
— Experimentam vários de um tudo e se entregam, se arriscam, bebem do gozo, mas acabam se sentindo vazios, cotidianamente.
— Transformam-se em figuras míticas ridicularizadas, abomináveis.
— É! São a desonra da sociedade. Saem para o mundo pra virarem do mundo. — Impuras!
— Provam e se sujeitam a cada uma por um trocado!
A noite nem dura tanto. Quisera que desta vez o prazer se vertesse lua afora.
Sem perceber, a porta é arremessada na parede e as chaves agora ensaiam um tango dramático. Gritos surdos. Um pranto. Os passos seguem sem rumo em direção à saída.
— Será que houve agressão?
— Dois moços?
— Quantos eram? Bandidos!
— Ninguém conseguiu ver nada?
As luzes do condomínio reprovam tanta correria. A polícia é acionada, mas não se sabe ao certo para qual finalidade. Nem com intervenção eles vão aprender!
— Bom! Agora eles vão aprender uma boa lição!
— Boa noite, vizinha! Cuidado com esse Covid!
— Vou cuidar dos afazeres de casa! Covid é mito!
— Pois é! Eu fiquei sabendo do problema dele. Tem cura?
— Ainda não fiquei sabendo, mas vai que é transmissível né? Fica longe!
— Você nem sai de casa mais, né? E a vacina?
— Nem você, não é mesmo? Ir pra onde? Sem dinheiro?
— Que horas chega o vizinho do andar de cima?
— Ah! Ontem ele nem dormiu em casa!
— Dizem que perdeu o emprego! Agora sabe Deus o que está fazendo pra ganhar a vida.
— Bom. Vou entrar, tenho que contar essas novidades pra Carminha pelo Zap!
— Fica um pouco mais! Eu quero saber se aquele segredo que ela guarda é sério.
— É câncer? Está definhando tanto! Pode ser até...
— Ai, credo! Você acha mesmo? Mas ela é uma santa!
E a conversa sem-fim, continua...
Sem nexo. Os outros fazem previsões, palpites, afirmam, apontam, caluniam. Mas no fundo do poço estão afundadas até o pescoço pela “boatice”. Presas ao passado com pedregulhos e dizeres de “não - te –que-ro-mais”, “você engordou”, “está muito magricelinha”, “o que são essas estrias?”
Família de revista decorada com o último exemplar do mês, se não fosse a desonra do fruto proibido atropelando o matrimônio. Unha encravada dos tensos dias no divã. Navalha na alma. Problemas banais, vizinhos normais.
— E a vida, como está?
— A mesma! Que bom!
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