SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Luxo e crise são duas palavras que não cabem na mesma frase. Em 2022, a guerra na Ucrânia gerou impactos negativos em diversas cadeias produtivas ao redor do mundo, especialmente em alimentos e energia, o que cooperou para a alta da inflação em nível global. Além disso, a persistência da Covid-19 continuou paralisando parte das atividades na China e a previsão é que o PIB (Produto Interno Bruto) global cresça 3,2% neste ano, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional).
Mas o mercado de luxo deve esbanjar uma alta entre 19% e 21% na venda de relógios, joias, bolsas, carros, vinhos, iates, artes, hospedagens em hotéis, experiências gastronômicas e de turismo, capazes de chegar à impressionante cifra de 1,38 trilhão de euros (R$ 7,6 trilhões) ao redor do mundo, segundo estudo da consultoria Bain & Company e da fundação Altagamma (um comitê italiano de marcas de luxo).
Para que o luxo continue sendo luxo ele precisa vir acompanhado de escassez. Quanto mais exclusivo, mais caro. Embora deixem uma parte da coleção de vestuário para os outlets, os maiores nomes do mercado de luxo não vão fazer liquidação de bolsas, relógios, perfumes e casacos exclusivos que não foram comprados: isso afetaria irremediavelmente a aura 'inacessível' das marcas.
O caminho era, literalmente, queimar o estoque: segundo estimativas do governo francês divulgadas em 2020, mais de 650 milhões de euros (R$ 357 milhões) em novos produtos de consumo são destruídos ou jogados fora todos os anos na França. Em 2018, a grife Burberry se envolveu em um escândalo, quando se descobriu que mais de R$ 140 milhões em estoque foram incinerados.
Para combater a questão, passou a valer, em 1º de janeiro deste ano, na França, uma lei antidesperdício, que impede que produtos não vendidos sejam destruídos. A iniciativa deu novo impulso ao promissor mercado de produtos de luxo de segunda mão (second-hand, em inglês), uma espécie de brechó de luxo, em que bilionários ou milionários descartam o que não querem mais para ricos menos abastados.
Mas não é só isso: as próprias grifes de luxo vêm investindo no mercado de segunda mão, comprando sites especializados ou fazendo parcerias. Segundo fontes do mercado de moda, é uma maneira camuflada de elas se desvencilharem de produtos encalhados, bastando para isso tirarem a etiqueta de peça nova.
Ao mesmo tempo, o mercado de segunda mão é a alternativa perfeita para que as grifes alcancem suas metas de ESG (que define melhores práticas ambientais, sociais e de governança), apostando na circularidade das peças. A maioria das roupas é feita de poliéster, material que demora 200 anos para se decompor e solta micropartículas de plástico quando lavado. De quebra, atendem os anseios das novas gerações de consumidores endinheirados, preocupados com o futuro do planeta.
De acordo com estudo feito pela consultoria GlobalData, em 2022, o mercado global de segunda mão em moda deve movimentar US$ 119 bilhões (R$ 620 bilhões) este ano, uma alta de 24% sobre o ano passado. A expectativa é que em 2026 este negócio movimente US$ 218 bilhões (R$ 1,13 trilhão). Os valores são puxados pela presença das grifes de luxo.
Em dezembro do ano passado, a Farfetch, a maior plataforma global do mercado de luxo, comprou a Luxclusif para liderar também a venda de artigos de luxo de segunda mão. Também em 2021, a Kering, dona da Bottega Veneta, Balenciaga, Alexander McQueen e outras grifes, tornou-se sócia da francesa Vestiaire Collective, brechó de luxo presente em dezenas de países. No mesmo ano a Gucci criou o Gucci Vault, site da marca dedicado ao vintage, oferecendo "itens de colecionador", como bolsas dos anos 1950, 1960 e 1970.
Segundo Maya Mattiazzo, professora da pós-graduação de Moda e Luxo da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), o que se vê no mercado de segunda mão é uma inflação semelhante à observada na revenda de carros. "Os usados estão ficando cada vez mais caros, há uma valorização desproporcional", afirma.
Como exemplo, ela cita a bolsa Chanel 2.55, um ícone da marca, fabricada desde 1955, que não tem qualquer previsão de se tornar rara. "Em Paris, você compra por cerca de 8 mil euros (R$ 44 mil) uma nova, enquanto nos brechós de luxo tem quem pague R$ 58 mil por uma usada."
A advogada Michelle Marie Hirome Sacchi, 42, é uma das adeptas do mercado de segunda mão, que no Brasil é operado por sites como Gringa, Etiqueta Única, Front Row e Peguei Bode.
Ela acaba de vender uma bolsa Hermès Kelly que o ex-marido lhe deu de presente há dez anos. À época, custou cerca de R$ 17 mil. "Eu a revendi por R$ 50 mil para um second-hand e sei que a bolsa já foi vendida por R$ 80 mil", diz Michelle.
Na opinião de Maya Mattiazo, uma das explicações para o fenômeno dos brechós de luxo está no efeito constrangimento que as grandes grifes provocam nos simples mortais. "Tem pessoas com vergonha de entrar em uma loja de luxo, gente que tem dinheiro, mas não se sente pertencente a este meio, especialmente pelo interior do país", diz a especialista.
"Marcas de alto luxo, como a Hermès, entendem que o cliente precisa mais da marca do que elas do cliente", diz Maya. Nestes casos, é comum que as lojas selecionem quem desejam ver ostentando a marca em itens mais exclusivos, como bolsas e relógios, para os quais há fila de espera.
Neste caso, diz ela, é muito mais fácil para quem tem dinheiro simplesmente encomendar a peça preferida pela internet, com todas as fotos e vídeos que garantam a procedência do produto.
O problema é que o mercado de segunda mão de luxo digital precisa lidar com as falsificações, muitas delas perfeitas, de produtos de luxo. Foi o que aconteceu com a administradora de empresas Lilian Marques Peixoto, 33. "Comprei há alguns anos, junto com o meu irmão, uma bolsa Chanel usada, para dar de presente para a minha mãe. Vi as fotos pelo Instagram do brechó. Pagamos R$ 15 mil na época. Quando a peça chegou, não era a mesma das fotos", diz.
A experiência a incentivou a criar um negócio de segunda mão com verificação da origem dos produtos. Assim nasceu a Front Row, que atende online e tem uma loja física em São Paulo, no Itaim Bibi. Os horários precisam ser agendados previamente e apenas três consumidores são atendidos simultaneamente. Nas prateleiras, itens como relógios Rolex de R$ 39 mil a R$ 200 mil, ou bolsas Hermès de R$ 22 mil até R$ 350 mil.
"Desde a Black Friday, temos vendido uma Hermès por dia", diz Lilian, que soma 1.900 clientes cadastrados, tanto do Brasil quanto do exterior, de lugares como Londres, Miami e Portugal. O tíquete médio, que era de R$ 1.500 quando a loja foi criada, hoje está em R$ 18 mil. A loja divide o pagamento em até dez vezes sem juros.
A maior parte das peças é por consignação -seja com pessoas físicas, ou com outros brechós cadastrados. A Front Row fica com a comissão sobre a venda.
"Existe uma grande demanda por peças novas, na caixa", diz. "As pessoas querem comprar coisas exclusivas, mas em um ambiente em que se sintam acolhidas. Muitas lojas de grifes de luxo adotam uma postura esnobe, um ar de superioridade, que incomoda parte dos consumidores."
Na Hermès, por exemplo, uma das marcas de mais alto luxo do mundo, existe uma pontuação (score) por cliente. As pessoas compras bolsas da grife, e acabam recebendo indicações para comprarem outros itens -roupas, sapatos, acessórios para casa. Quanto mais compram, mais alto o score.
Alguns consumidores compram, mesmo sem querer o produto, apenas para ter uma pontuação mais alta que os favoreça na hora de "serem escolhidos" para adquirir um item mais exclusivo. Aí procuram se desfazer desses outros itens nos brechós de luxo.
Mas o grande diferencial do negócio da Front Row, diz Lilian, está em garantir a procedência das peças. "Existem quadrilhas na China, Turquia e Europa especializadas na falsificação de relógios e bolsas", afirma. "O cerne do nosso negócio é a autenticidade."
A Front Row conta com uma profissional exclusiva para conferir a autenticidade das peças, softwares específicos e até uma espécie de scanner que valida as peças originais. Qualquer produto só entra no mix da Front Row se passar por este escrutínio.
Para Luciana Batista, sócia da Bain & Company, líder global da consultoria em ESG no varejo, existem três fatores sustentando o crescimento do mercado de segunda mão no mundo: a preocupação com sustentabilidade, a expansão do varejo online e o desejo de ser autêntico.
"O cliente que compra um produto second-hand quer criar looks únicos, combinar peças e estilos do seu modo", afirma. "É a exclusividade não mais pelo valor da peça, mas pelo look autêntico, uma preocupação principalmente dos consumidores mais jovens."
Luciana concorda que, neste movimento, garantir a procedência das peças se torna uma prioridade. Até para as próprias grifes, a quem não interessa ver um mar de produtos fake estampando o seu nome.
Em abril de 2021, líderes internacionais da indústria de luxo, como LVMH, Prada, Cartier e Mercedes-Benz, criaram o consórcio Aura Blockchain, para ajudar a rastrear os produtos. Por meio do sistema de armazenamento de dados descentralizado, é possível acompanhar a origem e o destino dos itens. No final do ano passado, a Bain, por meio da sua divisão especializada no mercado de luxo, passou a apoiar o consórcio.
"Também é uma maneira de as grifes entenderem o comportamento dos consumidores, a partir do caminho das peças", diz Luciana.
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