BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Aposta da equipe econômica para ganhar a confiança de investidores, o novo arcabouço fiscal proposto pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assegura um crescimento real das despesas (acima da inflação) em todos os anos, cria um piso para investimentos públicos e conta com o êxito de uma série de medidas do lado da arrecadação para conseguir entregar a prometida melhora nas contas públicas.

O desenho mantém o princípio de um limite para gastos, mas em formato mais flexível. O ritmo de alta das despesas em cada ano estará ligado à variação das receitas, com a condição de que se situe no intervalo de 0,6% e 2,5%. Esses serão o piso e o limite máximo de alta real dos gastos sob a nova regra.

Os investimentos, por sua vez, ganham uma blindagem contra cortes e podem ser ampliados de forma extraordinária, fora do limite de despesas, caso o ingresso de receitas supere as melhores expectativas do governo. A previsão de um patamar mínimo para aplicação em investimentos atende a uma preocupação política do PT de que esses gastos não sejam comprimidos ao longo do tempo.

O desenho foi anunciado em entrevista coletiva nesta quinta-feira (30) pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento e Orçamento) e por técnicos do Ministério da Fazenda.

Logo na abertura, Haddad afirmou que a fórmula proposta pelo governo não é uma "bala de prata" para resolver a situação das contas públicas e adiantou que haverá um novo pacote com medidas para ampliar a arrecadação do governo em até R$ 150 bilhões. "Isso aqui [regra fiscal] não é uma bala de prata que resolve tudo. É o começo de uma longa jornada. Mas esse é o plano de voo", disse.

A sinalização de que boa parte do ajuste se dará pelo lado das receitas frustrou a expectativa de analistas que ainda esperavam uma regra mais dura pelo lado das despesas. O ministro da Fazenda, porém, vinha sendo pressionado por alas do próprio PT a propor um arcabouço compatível com uma trajetória mais gradual de ajuste nas contas públicas.

Na coletiva, o ministro afirmou que o governo atuará para recompor a base tributária, que garante a arrecadação do governo, mas negou que isso vá representar um aumento da carga sobre os contribuintes. Ele defende a maior cobrança sobre aqueles que hoje quase não pagam imposto.

"Essa regra não vai ser impedimento para que se cumpra aquilo convencionado pela sociedade. Apenas o que foi convencionado tem que ter a contrapartida dos setores mais abastados", disse o ministro. Segundo ele, é preciso reverter a "tendência patrimonialista de apropriação do Estado".

Tebet reconheceu que o foco principal da nova regra não é diminuir despesas, mas sim ampliar a qualidade dos gastos. "Estamos tranquilos e convictos de que conseguiremos atingir a meta, diminuir as despesas dentro do possível, mas esse não é o foco principal, o foco principal é gastar com qualidade", disse.

Como antecipou a Folha de S.Paulo, o governo propõe uma regra fiscal em que o crescimento real das despesas federais seja limitado a 70% do avanço da receita primária líquida observado nos últimos 12 meses até o mês de junho ?dado disponível no momento da elaboração do Orçamento, apresentado em agosto de cada ano.

O princípio central da regra é permitir o aumento das despesas, mas em ritmo menor do que a alta da arrecadação. Essa combinação é considerada crucial para zerar o déficit público, melhorar a situação das contas públicas e estabilizar a trajetória da dívida pública nos próximos anos.

Além disso, o arcabouço estipula uma meta de resultado primário anual, mas com um intervalo de tolerância para cima e para baixo ?a exemplo do sistema de metas para inflação. O resultado primário é obtido a partir das receitas menos as despesas. Hoje, há uma meta única, definida anualmente.

A ideia da banda de flutuação é dar maior flexibilidade ao gestor caso as previsões de receita sejam frustradas, evitando cortes repentinos que poderiam paralisar a máquina pública.

A previsão do governo é que o déficit, projetado em 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) neste ano, seja zerado já em 2024, conforme mostrou a Folha. Em 2025, a estimativa indica superávit (arrecadação maior do que gastos) equivalente a 0,5% do PIB. No ano seguinte, 2026, o saldo positivo seria de 1% do PIB.

Caso o resultado das contas venha melhor do que a banda superior da meta anual, o excedente poderá ser usado para financiar os investimentos. Por outro lado, se o governo não conseguir atingir sequer o piso da meta de primário, é acionado um gatilho: no ano seguinte, o crescimento das despesas ficará limitado a 50% da alta das receitas.

A redução dessa proporção, porém, é a única sanção prevista no desenho até o momento. O governo ainda estuda se vai incluir no projeto de lei medidas específicas de ajuste que deverão ser adotadas pelo governo para ajudar na contenção de gastos. Hoje, o teto de gastos prevê congelamento de concursos e de reajustes acima da inflação.

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, diz que o rigor da regra não é determinado por essa lista de medidas e que a redução do percentual já é suficiente para induzir o ajuste, dando flexibilidade para que o gestor faça as escolhas políticas de qual política será preservada ou reduzida. Segundo ele, o desenho evita a repetição do processo de desgaste sofrido pelo teto de gastos ?que foi mudado diversas vezes pela gestão anterior e pelo Congresso Nacional.

"O país viveu muito tempo de blefe, em que você promete aquilo que não vai ser cumprido e cria regras que parecem que vão resolver alguma coisa de uma forma absurda, [mas é] completamente inexequível. E depois o país não atende, você faz PECs [proposta de emenda à Constituição] em cima de PECs para poder alterar isso", disse.

O mecanismo de ajuste prevê que o governo só retome a proporção de 70% se voltar a cumprir suas metas de primário. Além disso, segundo Ceron, uma vez fixada a meta de primário, ela não poderá ser alterada ao longo do exercício ?justamente para evitar que um gestor, na iminência de descumprir a meta e ser obrigado a frear a alta de gastos, modifique a meta para fugir da punição.

As projeções do governo de atingir superávit de 1% do PIB até 2026, disse o secretário, são sinalizadoras do compromisso firmado pela atual equipe para a trajetória das contas. No entanto, o alcance delas depende do pacote de medidas do lado da arrecadação, isto é, o arcabouço não é suficiente por si só para assegurar seu cumprimento.

Entre técnicos da área fiscal e analistas do mercado, a avaliação é de que uma análise mais profunda da regra vai depender do texto legal do projeto de lei complementar, que ainda não está pronto.

Na entrevista, Haddad disse que a minuta começa a ser redigida agora que Lula validou a proposta, e a previsão é ter o documento fechado no Ministério da Fazenda ao longo do fim de semana. A expectativa é apresentar o texto oficialmente ao Congresso na semana que vem.

Com o texto protocolado, o governo poderá incorporar as novas regras à proposta de LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024, a ser enviada até 15 de abril. O projeto da nova regra, por sua vez, iniciará a tramitação pela Câmara dos Deputados, onde deve ser analisado nas comissões e depois pelo plenário. Se aprovado, o texto seguirá para o Senado.

"Não vejo nenhuma razão para alguém duvidar da capacidade de a economia brasileira produzir os melhores resultados daqui para frente", disse o ministro da Fazenda. "A partir de hoje, está claro o que vamos perseguir."

No projeto, o percentual de vinculação entre despesas e receitas será fixo, mas a cada ano sua aplicação sobre as novas estimativas levará a números diferentes de espaço no Orçamento. Segundo Ceron, a regra permite um "espaço fiscal crescente" para dar um horizonte de estabilidade às políticas públicas.

No cenário em que a alta da arrecadação nos 12 meses até junho seja de 2% em termos reais, por exemplo, a elevação na despesa total poderia ser de até 1,4%.

Algumas despesas, porém, não seguirão essa variação de forma direta. Com o fim do teto de gastos, serão retomados os mínimos constitucionais de saúde e educação como eram até 2016: 15% da RCL (receita corrente líquida) para a saúde e 18% da receita líquida de impostos no caso da educação.

Isso significa que os gastos com saúde e educação também ficarão sob o limite, mas seu ritmo de avanço será maior, enquanto outros gastos precisarão ter crescimento mais moderado para respeitar o limite como um todo.

Além disso, algumas despesas ficarão de fora do novo teto, entre elas os repasses do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e a ajuda financeira para estados e municípios bancarem o piso da enfermagem. São gastos aprovados por emenda constitucional.

Os demais Poderes, como Judiciário e Legislativo, também terão limites próprios de despesas a serem seguidos anualmente. Diferentemente do Executivo, que é responsável pela execução de uma série de políticas públicas, esses órgãos concentram seus gastos em pagamento de pessoal (ou seja, salários e benefícios). Ainda assim, eles também terão o direito de expandir suas despesas em termos reais todos os anos, seguindo o intervalo de 0,6% a 2,5%.

Pela forma como foi desenhada, a proposta tem caráter pró-cíclico, ou seja, permite aumento de gastos quando há ampliação da receita e do crescimento, ao mesmo tempo em que impõe moderação em fases de baixa. Evitar isso era um dos princípios defendidos por economistas do próprio PT.

Por isso, o governo incluiu as travas mínimas e máximas para o avanço das despesas. "[O governo] Faz o colchão na fase boa para poder usá-lo na fase ruim. Isso dá segurança não só para o empresário que quer investir, mas para as famílias que precisam do apoio do Estado no que diz respeito aos serviços essenciais", disse Haddad.

O novo marco fiscal foi apresentado a Lula em seu formato final pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reunião nesta quarta-feira (29) no Palácio da Alvorada. Também participaram da reunião a ministra Esther Dweck (Gestão), a secretária-executiva da Casa Civil, Miriam Belchior, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e os líderes do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), e no Senado, Jaques Wagner (PT-BA).

Na sequência, Haddad se dirigiu à residência oficial do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para apresentar a proposta a lideranças da Casa.

Nesta quinta, antes do anúncio oficial da proposta, o ministro teve encontro com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e senadores para divulgar os detalhes e buscar apoio ao projeto.

ENTENDA A MUDANÇA NAS REGRAS FISCAIS

O QUE É O NOVO ARCABOUÇO FISCAL?

É o conjunto de regras de controle para as contas públicas. A proposta do governo busca substituir o atual teto de gastos, criado no governo de Michel Temer (MDB).

POR QUE O GOVERNO ESTÁ SUBSTITUINDO O TETO?

O governo avalia que o teto de gastos limitou a capacidade do Estado de promover políticas públicas. Apesar disso, reconhece que não é possível ficar sem uma regra de controle para as despesas.

O QUE É NECESSÁRIO PARA O TETO SER SUBSTITUÍDO?

Uma emenda constitucional promulgada no fim de 2022 estabelece que o governo deve apresentar, até 31 de agosto, uma nova proposta de regra fiscal por meio de um projeto de lei complementar. Uma vez aprovada a proposta pelo Congresso, ela substituirá o teto de gastos ?que será automaticamente revogado.

COMO É HOJE

Teto de gastos: regra inserida na Constituição e que está em vigor desde 2017. Ela impede que as despesas federais cresçam mais do que a inflação na passagem de um ano para o outro.

Meta de resultado primário: prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, é estipulada em valor numérico a cada ano na Lei de Diretrizes Orçamentárias. O resultado é obtido a partir da diferença entre receitas e despesas no ano. Hoje, é uma meta única e precisa ser cumprida pelo Executivo.

COMO É A PROPOSTA DO GOVERNO

Trava para gastos: em vez do teto de gastos, a despesa poderá crescer o equivalente a 70% da alta nas receitas (por exemplo, se a arrecadação subir 2%, a despesa poderá subir até 1,4%). Haverá, porém, limites mínimos e máximos para essa variação nos gastos. O percentual mínimo evita que uma queda brusca ou temporária na arrecadação obrigue o governo a comprimir despesas. Já o limite máximo afasta o risco de o Executivo expandir gastos de forma exagerada quando há um pico nas receitas.

Meta de resultado primário: em vez da meta única de resultado das contas públicas a ser perseguido pelo governo, haverá um intervalo projetado para o exercício e o Executivo precisará encerrar o exercício dentro dessa banda.


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