SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Laerte não entendeu, em um primeiro momento, o que aquela chuva de mensagens queria dizer. As reproduções em redes sociais, sobretudo no Twitter, de desenhos publicados por ela no jornal Folha de S.Paulo começaram a ser respondidas com o meme "Laerte, não entendi".

A origem é incerta, mas tudo indica que um leitor ficou confuso com uma de suas tirinhas e vários outros começaram a replicar o sentimento com desenhos engraçados ?o mais famoso é o de um lobisomem, que rasga a camiseta em desespero, buscando compreensão.

"Era uma espécie de bombardeio, e estou ainda sob esse impacto (...). A origem disso é alguém que acha que tem uma coisa a ser entendida e que o Universo o está sacaneando. Dificilmente uma piada ou uma mensagem cômica é isso, o humor também se realiza na compreensão", disse ela, em uma entrevista em março.

Na verdade, tratava-se de um encontro de linguagens e gerações, e com o tempo ficou claro que a brincadeira embutia uma ponte entre a artista, cuja carreira começou na década de 1970, e parte do público. "Às vezes desnorteia, mas acabo percebendo que se trata de uma forma de se interessar e curtir", diz agora a cartunista.

"Laerte passa por uma renovação de público, e esse público da geração Z está querendo ser abraçado por ela. Mas sua obra não é para entender, é um pouco como a arte japonesa, é preciso sentir", diz Bruno D'Angelo, fundador da gerenciadora de propriedade intelectual WIP Ventures.

A artista está lançando os primeiros produtos licenciados de sua carreira, a partir de uma coleção de itens que carregam suas ilustrações, como camisetas e canecas, com apoio da WIP.

"Em vários momentos na vida pensei em fazer ?ou tentei, sem muito sucesso. Já tive desenhos meus ilustrando capa de caderno, por exemplo, ou em camisetas", diz Laerte.

"Foi o Rafael Coutinho, seu filho e um dos caras que mais pensam em propriedade intelectual no Brasil, quem sugeriu que assumíssemos a gestão da propriedade intelectual de Laerte. Organizamos 50 anos de contrato e de materiais originais", conta D'Angelo.

Boa parte do material já havia sido digitalizada, e ajudou o fato de Laerte ter organizado o arquivo ao longo da sua carreira, conta.

"A empresa ficou responsável por toda a documentação que tem sido feita, para no futuro a gente conseguir ter isso guardado com muito cuidado." Ele diz que os cartuns da artista também devem dar origem a novos filmes e séries.

Como resultado, na loja virtual Chico Rei, já é possível encontrar desde camisetas para crianças com a poesia da andorinha Lola, uma caneca do herói eternamente mascarado Overman, uma toalha de fina ironia em que o ditador fardado tenta hipnotizar o povo do alto de seu palanque ou uma camiseta com o autorretrato da quadrinista.

"Sempre admiramos e nos inspiramos no trabalho da Laerte. Quando tivemos a oportunidade de nos encontrar, foi a realização de um sonho antigo. Tem sido incrível conseguir materializar a arte dessa grande mestra em nossos produtos e estamos muito orgulhosos da coleção", diz a gerente de parcerias estratégicas e licenciamentos da Chico Rei, Karoline Castro.

Uma das camisetas à venda é ilustrada pelo Homem-Catraca, talvez a primeira barreira para entrar no universo reflexivo e existencialista de parte de sua obra. Com cabeça de homem, pernas mecânicas e tronco de catraca (daquelas de ônibus antigos).

O personagem se vê confrontado com situações que fogem do senso comum e é um convite a divagações. Em uma tirinha, ele pode se ver transformado em uma caixa transparente de suco de groselha, tentar resumir o conhecimento da humanidade em uma coleção de enciclopédias ?embora faltem dois volumes? ou confundir uma sala de interrogatório com um dark room.

Do Laerteverso, ainda fazem parte o puxa-saco Fagundes, a menina Suriá (uma criança trapezista, que mora com a família no circo) e o Capitão Douglas (rebelde ou herói?), além do próprio Deus (segundo ela, quase humano).

Ao Roda Viva, da TV Cultura, ela disse admirar os cartunistas que mantêm personagens ao longo da vida, também chegou a "culpar" Mafalda por ter enveredado no mundo dos quadrinhos, em uma homenagem ao criador da personagem, o argentino Quino.

Seus diversos personagens, portanto, dificilmente serão retomados em novas tirinhas, mas podem ser colecionados pelos fãs ou estrelar em outras mídias. "Só não quero voltar a produzir histórias com esses personagens. Mas me agrada ver como eles conservam espaço afetivo entre as pessoas que leem", diz a quadrinista.

A Migdal, mesma produtora de "Minha Mãe é uma Peça 3", vai produzir um live-action do herói Overman, que vive em uma pensão em São Paulo e recebe pedidos de ajuda por um orelhão. O lançamento está previsto para a metade de 2024, com o ator Caco Ciocler no papel principal.

Para D'Angelo, o mercado de licenciamento de quadrinistas brasileiros tem potencial de crescer nos próximos anos. Eventos de grande porte, como a CCXP (Comic Con Experience), diz, evidenciam o apelo que essas obras têm junto ao público.

"Tem artista produzindo a partir dessa conexão, construindo seu trabalho com financiamento colaborativo. Existe um movimento grande dos autores conversando com seu público e estabelecendo uma conexão com a comunidade."

Dados da Abral (Associação Brasileira de Licenciamento) apontam que o faturamento com produtos licenciados no Brasil chegou a R$ 21,5 bilhões em 2021, um aumento de 7,5% em relação ao ano anterior.

Segundo um levantamento da Brandar Consulting, esse segmento já faturou em torno de US$ 300 bilhões (R$ 1,4 trilhão) no mundo.

O mercado de entretenimento é feito de pontas que não se comunicam, segundo D'Angelo. As marcas estão sempre em busca de originalidade e os criadores têm autenticidade, mas muitos não sabem vendê-la. "Quando essas duas pontas se juntam, dá certo."

Também professor de quadrinhos em um projeto social, ele conta que a expressão tem uma potência infinita e que novos artistas devem ser descobertos e incentivados a fazer o licenciamento de suas obras.

"Os quadrinistas talvez sejam a grande força do Brasil que ninguém percebeu agora, qualquer um pode se expressar assim, não por acaso o fanzine é um veículo de tanto sucesso no país."


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