BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Elemento facilitador para o avanço da pauta econômica no primeiro semestre, a relação entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro Fernando Haddad (Fazenda) ficou estremecida após o ruído em torno da taxação das offshores, ocorrido em meados de agosto, e ainda não voltou ao que era antes.
O discurso oficial em ambos os lados é o de que o episódio foi superado e o canal de diálogo segue aberto, em nome do bom andamento das prioridades do país. Nos bastidores, porém, a relação esfriou.
Logo no início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Haddad tornou-se um articulador político de peso junto aos deputados --inclusive Lira--, que rasgavam elogios a sua condução.
Seu protagonismo ganhou terreno em um ambiente de base política instável no Congresso e com os negociadores oficiais do Palácio do Planalto sob a desconfiança e a resistência dos parlamentares.
O ministro virou um dos interlocutores preferidos não só dos congressistas, mas também do mercado financeiro --algo que Lira atribui, em conversas com aliados, ao próprio trabalho dos deputados de apoiar a agenda da Fazenda.
Depois do episódio das offshores, o clima mudou.
O presidente da Câmara culpou o ministro pela inclusão da taxação dos recursos mantidos em paraísos fiscais na MP (medida provisória) da correção do salário mínimo.
A estratégia beneficiava a Fazenda, ao evitar a perda de validade de uma medida importante para impulsionar a arrecadação, mas irritou Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que só ficaram sabendo depois da artimanha.
Como revelou a Folha de S. Paulo à época, Lira e Haddad tiveram uma conversa tensa ao telefone sobre o ocorrido. Depois desse diálogo, o ministro concedeu uma entrevista em que criticou a Câmara.
"A Câmara está com um poder muito grande, e ela não pode usar esse poder para humilhar o Senado e o Executivo", disse.
Haddad se retratou publicamente, e os ânimos se acalmaram. De lá para cá, a Câmara concluiu a votação do novo arcabouço fiscal e deu sinal verde a outras medidas do pacote prioritário da Fazenda, como a regulamentação de apostas esportivas.
Mesmo assim, depois do entrevero, Lira demora mais para responder a Haddad no telefone. Interlocutores afirmam que a relação não é ruim, mas se tornou mais protocolar.
Na semana passada, ambos se falaram por telefone e ficaram de ter uma nova conversa nos próximos dias, após Haddad voltar de uma viagem a Nova York, para tratar de prioridades econômicas no Congresso.
Lira quer discutir detalhes de projetos que despertaram a insatisfação de parlamentares, como a MP que regulamenta a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) em favor da tributação federal sobre incentivos fiscais concedidos no ICMS (imposto estadual).
As empresas hoje descontam esses benefícios da base de cálculo de IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e da CSLL, além de usá-los para pagar menos PIS/Cofins, prejudicando a arrecadação federal.
Há casos em que, a cada R$ 1.000 de incentivos no ICMS, o governo federal abre mão de outros R$ 432,50 sem que tenha decidido concordar ou não com o benefício.
A MP busca corrigir isso, restringindo a aplicação desses descontos às subvenções atreladas à realização de algum investimento --o que gerou uma grita enorme nos setores beneficiados, refletida nos corredores do Congresso.
O presidente da Câmara tem recebido reclamações sobre o projeto de deputados, principalmente do Nordeste (mas também de outras regiões), além de representantes do setor produtivo --que veem na medida um atentado contra os incentivos concebidos para ampliar a geração de emprego e renda nas localidades.
Para esses grupos, a Fazenda foi muito além do que o previsto na decisão do STJ.
O governo prevê recuperar R$ 35,3 bilhões no ano que vem com a MP e já incluiu essa receita na programação do Orçamento de 2024. Ela é crucial para o ministro conseguir alcançar sua meta de zerar o déficit já no ano que vem.
Na visão da Fazenda, trata-se de fechar brechas na lei usadas por cerca de 5.000 empresas para pagar menos tributos federais, descontando da base de cálculo benefícios fiscais sem qualquer relação com investimentos produtivos.
A prática é vista pelo Executivo como um "jabuti tributário", uma forma de os estados darem um incentivo com o chapéu alheio --neste caso, o da União. Por isso, a MP restringe a concessão dos créditos a quem possui benefícios fiscais do ICMS diretamente relacionados a investimentos.
Do ponto de vista político, porém, já se reconhece na Fazenda que essa será uma batalha tão árdua quanto foi a do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), cujo projeto só foi aprovado pelo Legislativo após um amplo acordo de flexibilização envolvendo congressistas, empresários e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Membros da equipe econômica já admitem negociar pontos da iniciativa, como o tamanho do crédito a ser concedido às empresas sob o novo modelo.
A MP fixa um percentual de 25% sobre a subvenção estadual, a ser usado para abater tributos federais, mas o valor pode subir de forma a amenizar as resistências.
A Fazenda também já costura uma negociação para assegurar a aprovação da MP que trata da taxação de fundos exclusivos de investimento, mantidos pelos super-ricos.
A medida enviada pelo Executivo prevê uma cobrança de 15% sobre rendimentos futuros e 10% sobre o estoque acumulado até hoje, sobre o qual os detentores ainda não recolheram nenhum centavo de Imposto de Renda. O governo prevê arrecadar R$ 13,28 bilhões em 2024 com a iniciativa.
No entanto, Lira já avisou que a Câmara aprovou um projeto de lei, em 2021, com uma alíquota de 6% sobre o estoque desses fundos. Esse patamar seria o limite aceito pela Casa para dar sinal verde à medida pretendida por Haddad.
Segundo interlocutores, a mudança no texto já está acertada. A visão no Congresso é de que a fixação de uma alíquota com a qual todas as partes concordam, inclusive seus pagadores, será boa para a arrecadação federal.
Na Fazenda, a avaliação é de que é essencial aprovar as medidas necessárias para recompor a base fiscal do governo ainda em 2023 --urgência que deve servir de empurrão para a retomada de um diálogo mais pragmático com Lira.
A partir do ano que vem, o diagnóstico é de que haverá menor disposição do próprio Executivo e do Congresso em apoiar medidas que podem ser vistas como incômodas.
O ambiente do Congresso em 2024 já deve ficar mais contaminado pelo clima das eleições municipais e pelas articulações para a sucessão nas presidências da Câmara e do Senado.
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