BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O impacto das mudanças climáticas sobre as famílias, especialmente as mais vulneráveis, levou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a abrir a discussão sobre como reformular os mecanismos de proteção e assistência para dar uma resposta mais adequada diante de situações extremas.
O debate não só é atual, mas é considerado urgente pelo Executivo. Em um intervalo curto de tempo, regiões próximas no Brasil experimentaram fenômenos de natureza e impactos completamente distintos, como enchentes e secas severas.
Em entrevista à Folha, o secretário nacional de Assistência Social, André Quintão, afirma que a legislação atual de enfrentamento a desastres é insuficiente para lidar com essa nova realidade.
Além da ausência de instrumentos adequados para prestar apoio a famílias que sofrem perdas, humanas ou materiais, ele avalia que é preciso rever a própria lógica de atuação do governo, saindo de uma postura reativa para uma atuação mais preventiva, com mapeamento de riscos.
"Infelizmente, a questão climática é responsabilidade global. Não temos mais aquele modelo 'em tal período vai ter chuva'. Em uma mesma semana, fiz reunião sobre comunidades isoladas na região amazônica [afetadas pela seca] e enchentes no Sul. No Rio Grande do Sul, já estive em momento de seca e no ciclone. Tem que estar preparado o ano todo", afirma.
"No Brasil, sobretudo, é muito grave, porque populações em situação de maior vulnerabilidade geral sofrem mais com as calamidades. Precisamos ter uma estratégia ampliada."
A preocupação com o tema não é exclusividade do Brasil. A discussão sobre a chamada "proteção social adaptativa" ganhou força em fóruns internacionais, sobretudo após a pandemia de Covid-19 e diante do agravamento da emergência climática.
No Brasil, a reformulação das políticas de assistência será um dos temas levados pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome à 13ª Conferência Nacional de Assistência Social.
O evento ocorre entre 5 e 8 de dezembro e vai reunir membros do governo federal e gestores de estados e municípios, com o objetivo de propor diretrizes para o aperfeiçoamento do Suas (Sistema Único de Assistência Social).
O marco legal que hoje disciplina a resposta do governo federal a desastres foi aprovado em 2010 e alterado por leis de 2013 e 2014.
Segundo Quintão, as regras foram importantes no momento de sua aprovação, mas hoje são insuficientes. "A calamidade ali estava muito focada em enchente, em que a privação principal era a perda temporária da casa. Era uma resposta muito voltada para o abrigo. Agora, a gente tem intensidade e natureza de calamidade diferentes", explica.
O governo já vem fazendo algumas flexibilizações. Recentemente, as chuvas no Rio Grande do Sul castigaram tanto algumas cidades que as prefeituras nem sequer dispunham de imóvel para dar abrigo às famílias afetadas. O MDS emitiu uma nota técnica autorizando as prefeituras a usarem o dinheiro da ajuda federal para bancar aluguel social.
O secretário afirma que um parecer jurídico do ministério deu respaldo à medida, mas usa o exemplo como um caso ilustrativo de como a legislação precisa ser atualizada.
"A família pode ter perdido móveis, documentos, dinheiro, pode ter perdido tudo. Mas eu passo o recurso enquanto o município tem um abrigo", diz. "O recurso não pode ser só para o acolhimento do ponto de vista de abrigo. Essa é a principal mudança", afirma.
Ele ressalta que, nessas situações, outras áreas do governo, como defesa civil, seguem dando ajuda de outras maneiras, mas há limitações para a atuação do MDS via assistência social. É esse o mote da reformulação defendida pelo secretário.
O foco da ajuda e o prazo de duração também são pontos em discussão. Para Quintão, o modelo atual dá ênfase à disponibilização de equipamentos públicos (como um abrigo) em vez de direcionar esforços ao atendimento das vulnerabilidades individuais dos atingidos pelos desastres -algumas delas agravadas pela situação de emergência.
"O caso dos yanomamis, por exemplo, é uma emergência que não envolve desabrigo. Lá eles perdem a fonte de sobrevivência em função de contaminação das fontes de caça, coleta e pesca. Numa seca, por exemplo, a pessoa não perde a casa. Ela perde a fonte de renda. Então, o abrigo não resolve. Nós vamos ter que ter outro tipo de resposta", avalia.
Uma das propostas é a criação de uma Força Nacional do Suas, em moldes semelhantes à Força Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde). Criada em 2011, a FN-SUS realiza missões preventivas ou de assistência em situações epidemiológicas, de desastres ou de desassistência à população, sempre que a capacidade de resposta do estado ou município estiver comprometida.
"A gente quer ter equipes especificamente direcionadas para calamidades e emergências. Tem que ver o formato de pessoal, o custo, mas é importante porque o assessoramento técnico ajuda, inclusive para acessar os recursos", diz o secretário.
Outra ideia é passar a incluir na equipe do Suas representantes escolhidos pelas diferentes etnias indígenas, não só para auxiliar com a língua, mas também para reduzir o atrito cultural e facilitar a entrada dos serviços de assistência nas aldeias.
Há ainda o desafio, segundo ele, de garantir as políticas regulares de assistência em um cenário cada vez mais adverso. Quintão cita como exemplo as comunidades na Amazônia que ficaram isoladas diante da seca histórica. Sem alternativas por estrada, é difícil até mesmo chegar às famílias mais necessitadas para verificar a possibilidade de inclusão em programas como o de aquisição de alimentos ou o Bolsa Família.
"Nesse período, a embarcação não vai chegar. Não tem o rio. Você tem o fenômeno de comunidades isoladas. Como faz proteção social? Tem a resposta emergencial, cesta básica chega com o helicóptero da FAB [Força Aérea Brasileira], mas busca ativa e atualização cadastral são tarefas permanentes", afirma Quintão.
Hoje, o MDS dá apoio por meio da compra de veículos ou embarcações que permitam o deslocamento dos agentes sociais no território. No entanto, as mudanças climáticas estão exigindo uma reflexão sobre o modelo. Segundo o secretário, embarcações maiores adquiridas no passado não estão sendo mais aproveitadas durante todo o ano por causa da seca em alguns rios.
"Tinha que ter uma diversidade de embarcações, maiores ou menores para um determinado momento do ano. Não adianta mais adquirir e passar uma embarcação para o município. Teremos que ver um modelo dinâmico, talvez de contratação [aluguel]", afirma.
Quintão afirma que o debate é válido não só para dar uma resposta às calamidades, mas também para lidar com o que ele chama de "novas vulnerabilidades" que surgem com mudanças climáticas, eclosão de crises e conflitos (que geram um contingente de migrantes e refugiados) e o próprio envelhecimento da população.
"O risco de isolamento social para idosos em situação de vulnerabilidade vai aumentar. Nós vamos ter que ter respostas novas para esse fenômeno", diz.
Nos últimos anos, o Suas passou por um processo de desmonte. Os recursos para manutenção dos centros de assistência caíram de R$ 2,4 bilhões em 2019 para menos de R$ 1 bilhão em 2022. Neste ano, a proposta original de Orçamento reservava apenas R$ 50 milhões, que foram ampliados a R$ 2 bilhões após a aprovação de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) na transição autorizando o aumento de gastos.
Para Quintão, a reconstrução da rede de assistência não se dará "da noite para o dia", mas ele defende ações como a retomada do diálogo com estados e municípios e a criação de um programa permanente de revisão do Cadastro Único, que vem sendo implementado pelo ministério.
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