SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Grupos donos de distribuidoras de energia elétrica expandiram seus braços que atuam no mercado livre de energia, em que o consumidor final negocia com uma comercializadora o preço da eletricidade em vez de integrar o mercado cativo, do qual os consumidores residenciais, por exemplo, fazem parte.
Esses braços, adaptados para serem comercializadoras varejistas, hoje atuam como um caminho alternativo de arrecadação dos grupos em meio a eventuais perdas das distribuidoras a partir da diminuição de consumidores no mercado cativo e do aumento da geração distribuída no país.
Desde o início deste ano, todos os consumidores de energia elétrica em alta tensão podem migrar para o mercado livre, sendo que aqueles com demanda inferior a 500 kilowatts (kW) precisam ser representados por uma comercializadora varejista na CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) ??isso significa, em geral, contas a partir de R$ 10 mil.
A função dessas varejistas é, além de vender energia, lidar com normas, prazos e detalhes técnicos para esses consumidores. Aqueles no mercado livre com demanda superior a 500 kW que não contratam a comercializadora varejista precisam lidar com a burocracia do setor.
Nos últimos anos, o mercado livre cresceu no país. Em 2013, por exemplo, eram 3.518 consumidores, em 2019, 16.021, e em 2022, 31.016. Agora, com a expansão, a previsão é que só neste ano 24 mil novos consumidores sejam incorporados.
O receio das distribuidoras é que esse crescimento deixe as contas do mercado cativo mais caras. Isso, em parte, porque quem está no segundo precisa pagar parcela dos subsídios de quem está no primeiro, além de arcar sozinho com as bandeiras tarifárias e com a energia produzida em Itaipu e Angra 1 e 2.
Aqueles consumidores do mercado livre que compram energias eólica e solar, por exemplo, pagam só 50% da taxa relativa ao uso do fio na transmissão e distribuição de energia. Assim, os outros 50% são rateados entre o mercado cativo e os consumidores do mercado livre que não compram energia dessas fontes incentivadas. Quem está na geração distribuída não paga nada desta taxa.
Essa situação, argumenta o setor, causa mais furtos e maior inadimplência dos consumidores ?o que, em certa medida, afeta as contas das distribuidoras.
"A conta ficando mais cara é um incentivo para o consumidor do mercado cativo querer ir para o mercado livre", afirma Angela Gomes, diretora-técnica da PSR Consultoria.
O setor apelidou esse fenômeno de "espiral da morte", já que com a migração contínua a conta tende a ficar cada vez maior para os permanecentes.
Além disso, Marcos Madureira, presidente da Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica), afirma que hoje as distribuidoras já têm um portfólio de compra de energia até 2050 e que, à medida que mais consumidores migram para o mercado livre, maior é a quantidade de energia que sobra na conta das empresas.
Essa energia, geralmente, é vendida para outras distribuidoras que estão precisando, mas, segundo Madureira, o cenário atual é de maior necessidade de venda do que de compra.
O aumento da geração distribuída e uma expansão menor do que o planejado do consumo de energia elétrica nos últimos anos também influenciam esse contexto.
"Se a energia sobra, ela é vendida ao preço do PLD [Preço da Liquidação das Diferenças]. Mas o PLD, nesse momento, está em torno de R$ 70 por megawatt hora, enquanto o mix de compras da distribuidora está em torno de R$ 250. Quando a sobrecontratação é fruto de um problema de cálculo da distribuidora, ela arca com essa diferença. Mas, quando a sobra é oriunda da migração do consumidor do mercado regulado para o mercado livre, essa diferença de custo é paga pelos consumidores do mercado regulado, aumentando então a tarifa", afirma Madureira.
Ao menos nos números, essa lógica ainda não gerou resultados nos furtos. Dados reunidos pela Abradee mostram que em 2022 14,6% da energia das distribuidoras foi perdida por razões não técnicas, como furtos.
Como a meta estipulada pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) era de 10,7%, as distribuidoras precisaram arcar com o prejuízo relativo aos 3,9%. Ainda assim, o valor é próximo aos registrados desde 2013, com exceção de 2020 (pandemia), quando foram 16,6%.
A Folha de S.Paulo pediu dados de inadimplência para a Aneel, mas não teve retorno.
Se o cenário não é agradável para as distribuidoras, ele é para as comercializadoras.
Não à toa, os principais grupos de energia do país criaram recentemente comercializadoras varejistas para atuarem com os novos consumidores do mercado livre, que a partir de 2026 receberá consumidores de baixa tensão, à exceção das classes residencial e rural ?estas entram em 2028.
O grupo Cemig, por exemplo, ajustou um de seus braços para atuar como varejista na CCEE e, desde o ano passado, conseguiu vender 100 MW médios e captar 1.200 clientes ?a metade em Minas Gerais. Alguns desses ainda não migraram para o mercado livre porque precisam esperar o contrato com a distribuidora local se encerrar.
A meta da Cemig é ter 20% do mercado nacional varejista até 2026, sendo que o mercado potencial é de 100 mil a 150 mil clientes, de acordo com a empresa. A comercializadora atacadista do grupo, que lida com grandes indústrias, tem 4.500 clientes e uma carga de 4.200 MW médios, sendo 1.400 gerados pelo próprio grupo.
Para atingir a meta no varejo, o grupo criou alguns atrativos para o cliente.
O primeiro deles, afirma Dimas Costa, vice-presidente de Comercialização da Cemig, é garantir que o cliente pague apenas pelo que consumir, como se fosse no mercado cativo. Nesse caso, é a comercializadora que ganha com a sobra ou perde com a falta de energia.
"O cliente varejista também não precisa pagar os encargos, porque a Cemig coloca isso dentro do preço. Se o encargo explodir, ele está garantido. Algumas comercializadoras estabelecem um teto de quanto elas pagarão dos encargos, mas a Cemig não faz isso, ela assume tudo. Se o encargo subir, ela paga, se baixar, ela ganha", diz Costa.
A Cemig também fornece a seus clientes um certificado de que a energia que abastece o estabelecimento vem de fontes limpas, além de um monitoramento mensal sobre a situação energética do país.
"É um processo igual ao de telefonia. Esse cliente vai ter uma portabilidade, então eu tenho de ter algum diferencial no sentido de cativá-lo", diz Costa.
Paralelamente, o grupo Energisa criou até uma marca nova para entrar nesse mercado ?a (re)energisa, que também gere fazendas solares e uma usina de biometano.
Roberta Godoi, vice-presidente de Soluções Energéticas do grupo e líder da marca, diz que uma das formas de captar o cliente para o mercado livre é garantir a ele o percentual de desconto em relação ao mercado cativo. Em alguns casos, pode chegar a 30%.
Assim como na Cemig, há a possibilidade também de o cliente fechar um contrato com um preço fixo pela energia consumida.
"Uma das nuances do mercado livre é que ele parece muito simples, mas na verdade quem é o garantidor dessa transação toda é a comercializadora. Então ela tem de ter expertise, a gente nunca deu qualquer tipo de sinal de insolvência", afirma Godoi.
Ela evita traçar planos exatos para a (re)energisa no mercado livre. Hoje, em comparação, o grupo tem 8 milhões de clientes na distribuição, de um total de 88 milhões.
Nessa guinada contra a "espiral da morte", os grupos de energia estão se adaptando. Sobre se os ganhos das comercializadoras são maiores que as eventuais perdas das distribuidoras, Costa, da Cemig, sintetiza: "O ganho é maior, mas é necessário olhar cada negócio separado."
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