NOVO HAMBURGO, RS (UOL/FOLHAPRESS) - No condomínio onde nasceu o goleiro Alisson coisas curiosas acontecem. Um casal de joão-de-barro construiu seu ninho no vão do ar-condicionado no quarto andar de um dos 83 prédios. Outro fez morada no alto de um poste de energia elétrica. Todos os dias um bem-te-vi se empoleira nos galhos de um ipê roxo. Orquídeas, azaléas e bocas-de-leão balançam sob o vento e a chuva, e bate ponto na secretaria de administração a cadela Lully, meio poodle meio Yorkshire, um pouco cega dos dois olhos, unhas pintadas de rosa, um colar de pérolas no pescoço e lacinhos na cabeça. Ela chega quando o escritório abre, às 16h, e só sai quando o último morador é atendido, às 20h.

Não falta trabalho na secretaria de administração do residencial Mundo Novo, em Novo Hamburgo (RS), um conjunto de cinco condomínios criados para famílias de sapateiros de baixa renda nos 1980. Todos os dias as 58 câmeras de segurança registram os vizinhos jogando lixo no lugar errado e um dos cinco funcionários da limpeza agarrando uma vassoura e uma pá e corrigindo a falha.

Todos os dias, os 4.200 moradores dos 1.328 apartamentos consomem 92 quilos de erva-mate de chimarrão e outros 575 quilos de carne bovina - assados em uma das oito churrasqueiras comunitárias, se for fim de semana ou feriado. Se o feriado for o Dia do Gaúcho, em setembro, as crianças montam exposições sobre a cultura gaúcha na escola municipal Machado de Assis, a alguns metros da portaria do residencial, vestem prendas e bombachas e aprendem o hino do Rio Grande do Sul. Mas se for qualquer outro dia do ano, as crianças correm pelas ruas arborizadas, jardins e pracinhas, caçam girinos nos alagados formados pela chuva ou prendem pequenos besouros em linhas de costura para vê-los voando sob seu controle.

Assim era a vida de Alisson Becker, que morou lá até os oito anos, um dos raros jogadores de futebol a ter tido o privilégio de uma infância como essa. Se houve alguma dificuldade familiar ou financeira, percalços que se apresentaram à maioria de seus colegas de time na mesma época, nada chegou até ele. O goleiro do Liverpool terá agora o privilégio de defender a trave brasileira na Copa do Qatar.

Em Novo Hamburgo, Alisson, seu irmão Muriel e seus amigos gostavam de jogos e podiam escolher o que jogar, a depender do dia da semana. Na segunda jogavam bola no "Bombonera", campinho com arquibancadas no formato do estádio argentino. Na terça jogavam videogame na locadora do 203, no bloco 66. Na quarta jogavam água pela janela do 104/76. Na quinta jogavam galhos para assustar os moradores do 102/64. Na sexta jogavam tudo de novo. E Alisson às vezes chorava.

Quando Alisson chorava era por não conseguir jogar no time dos meninos mais velhos e, quando isso acontecia, a vizinha Vera Rauber intercedia para apaziguar as rivalidades infantis. Hoje uma placa informa que o campinho mais próximo do antigo bloco do goleiro é de uso exclusivo de jogadores sub-12.

Quando faz sol, os velhinhos se reúnem no gramado entre o 54 e o 55, tomam chimarrão e comem bergamota. Quando a chuva cai, a moça do 403/65 recolhe as roupas do varal, a senhora do 203/65 encontra uma lembrança na memória que se esfumaça, e Enedir Wüst, do 203/79, se encolhe na cama e tenta se recuperar de sua visita de 18 dias à UTI, onde foi retirar uma bala da cabeça. A água molha a terra e lava as dores que se depositaram sobre o solo. Essas coisas acontecem e ninguém percebe.

Ninguém percebeu quando Magali Becker desceu de seu carro no dia 19 de setembro passado, e suas botas de salto alto afundaram na lama da chuva em frente à calçada do 73. Ninguém percebeu quando ela subiu até o quarto andar e abriu a porta do apartamento onde ela passou uma década da sua vida, justamente a década em que ela aprendeu a ser mãe. Seu marido projetava moldes de sapatos e cantava sambas nos fins de semana. Seus filhos se aninhavam na cama do casal para fugir do frio e da solidão.

Quando voltou, mais de vinte anos depois, Magali lançou um olhar demorado pelos 53 metros quadrados do imóvel, e seus olhos umedeceram e os pelos de seu braço se arrepiaram. Sua voz soou como um rio por onde navegam as lembranças do nascimento de uma família.

O carrinho de bebê que ela carregava pelos quatro lances de escada. Muriel cuidando de Alisson no berço. A camisa do Taffarel que os irmãos vestiram até se desfazer. A bicama que compartilharam. O lustre da vizinha de baixo que eles derrubaram por jogar futebol na sala. Os brinquedos amontados no quarto minúsculo, pequeno demais para as chuteiras, luvas, troféus e os sonhos dos meninos boleiros. Muriel chegou aos profissionais do Internacional e hoje joga no Chipre. Alisson chegou ao Liverpool e mês que vem estará no Qatar, tentando inscrever a sexta estrela no uniforme da seleção. O sonho de uma nação dentro do sonho daquele menino.

Depois que a família Becker deixou o apartamento, os moradores seguintes instalaram um balanço no meio da sala, e adesivos de estrelas fosforescentes iluminaram a escuridão do quarto onde dormia o futuro goleiro do Brasil. Os moradores seguintes, um jovem casal de empresários, se orgulharam quando compraram móveis novos e encheram o quarto de embalagens usadas em sua loja. Novas utilidades para uma velha casa.

Agora eles estão de mudança, e seus filhos, se um dia eles tiverem, vão correr, pular e brincar longe dali. Quando Alisson estiver no Qatar, o apartamento ficará vazio, um modesto apartamento em conjunto familiar, dois quartos, um banheiro, sala e cozinha, à espera de novos moradores, que serão recebidos pela família de joão-de-barro, pelos bem-te-vis e azaléas, pelas orquídeas, ipês roxos e pelas bocas-de-leão, pela cadela Lully e por toda a sorte de moradores do condomínio Mundo Novo, em Novo Hamburgo (RS), onde coisas curiosas acontecem.


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