SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - É fácil para Edinanci Silva, 46, eleger o melhor dia de sua vida. Foi logo após os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, na manhã seguinte à decisão de não competir mais em alto nível no judô.
"Você acorda cedo e pensa: posso dormir até tarde, posso comer o que quero. Não tenho horário para ir à academia. Posso treinar se eu quero, quando quero, sem me preocupar com nada. Ir pelo prazer, não pela obrigação. Como era quando comecei", lembra.
A primeira judoca brasileira a participar de quatro edições olímpicas gosta de comparar as fases de sua carreira a estágios do sol. Encerrar a carreira foi como o tramonto. De brando para frio. Pode ser o início de um novo aprendizado. Bem diferente da loucura das competições e da obsessão por medalhas. "Este é o sol do meio-dia. Quente. Insuportável", define.
Edinanci quebrou paradigmas, causou polêmica e sofreu preconceito. Bronze nos mundiais de Paris (1997) e Osaka (2003), descobriu ser intersexo, característica presente em cerca de 2% da população mundial, antes das Olimpíadas de 1996, em Atlanta. Ela tinha características morfológicas masculinas e femininas.
Além dos órgãos femininos, possuía testículos internos que produziam testosterona, hormônio masculino que a fazia ter mais força.
Ela ainda se lembra do preconceito que sofreu, de como seu caso foi debatido na imprensa de maneira que até hoje considera sensacionalista. De quanto seus pais sofreram.
"Fui impedida de competir em 1995, de participar de um evento, porque atletas se mobilizaram e fizeram uma carta para me proibir de estar presente. Vejo histórias parecidas com a minha e sinto como se fosse comigo", diz.
Embora o caso seja diferente, ela se viu no preconceito sofrido por Tiffany Abreu, a primeira jogadora de vôlei trans a disputar a Superliga, principal campeonato nacional da modalidade. Sente o mesmo ao acompanhar, pela imprensa, situações parecidas de atletas internacionais.
"O conflito interno pode não transparecer na face porque você tem sempre de estar sorrindo, não pode demonstrar porque, senão, afunda. Vai tudo por água abaixo, e as pessoas que te querem ver assim vibram. Só nos resta reagir e lutar para mudar. Acho que, de uma certa forma, colaborei para mudar isso."
Para ir aos Jogos de Atlanta, passou por cirurgia para retirada dos testículos e do útero.
Edinanci ainda vê a vida sob a ótica de uma esportista. Mas não como uma atleta de alto nível. Depois de quase quatro anos sem assistir sequer a competições de judô pela TV, reencontrou-se como instrutora de crianças. Transmite seus conhecimentos em projeto de artes marciais do também judoca Thiago Camilo em Heliópolis, na região sudeste da cidade de São Paulo.
Há pouco mais de um mês, esteve no Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo, na programação da 29ª edição do Dia do Desafio, campanha mundial pela prática de atividades físicas e pelo combate ao sedentarismo. Passou o dia a ensinar, o que mais gosta de fazer hoje em dia. É o caminho que pretende seguir.
"Quem vive no alto rendimento está preocupado com o objetivo principal, que é o resultado. A parte filosófica é ignorada. Isso só vem depois. É quando você começa a transmitir as coisas para as crianças e colocar em prática tudo o que viveu. Aí você começa a pensar: se eu tivesse aplicado tudo isso no meu tempo de atleta, os resultados poderiam ter sido diferentes. Porque você fica tão focada na competição, na cobrança, na torcida, nos patrocinadores... E cobra demais a si mesmo."
Edinanci esteve nas Olimpíadas de 1996, 2000, 2004 e 2008. Na última, obteve seu melhor resultado, a quinta colocação. Antes dos Jogos Paraolímpicos de 2021, de Tóquio, foi sparring dos brasileiros deficientes visuais que disputariam a modalidade, uma experiência transformadora.
"Treinei com atletas que conseguem montar uma estratégia de luta apenas ouvindo. Percebem se a respiração está ofegante, se não está, e por isso descobrem se o oponente está nervoso, cansado, e sabem diferenciar isso. Isso para mim é um aprendizado enorme, colocar as técnicas de judô sem ter a visão, só visualizando na mente."
O reinício no esporte significou, para Edinanci, desfazer-se do ego. Esquecer o tempo em que era o centro das atenções, a esportista em busca da glória. Foi mais difícil do que pode parecer. Se os primeiros dias após a aposentadoria das competições de alto nível foram um sonho, o corpo começou a cobrar a conta dois meses depois. Como se não aceitasse uma nova rotina sedentária e indisciplinada. Não estava acostumada àquilo.
Ela começou a acordar às 5 horas da manhã e pensar: está na hora.
"Está na hora de quê?", questionava-se.
O organismo pedia a volta do hábito de levantar peso, ir ao tatame, fazer exercícios em repetição. Esta foi a parte mais difícil: encontrar um novo significado para a vida. Transmitir ensinamentos de judô a crianças lhe deu isso.
"Tive de achar outro sentido para algo que pensei durar para sempre", lembra.
Os demais instrutores disseram às crianças no Sesc 24 de Maio quem ela foi. Estava ali uma das judocas mais importantes da história do país. Alguém que também fora dos tatames quebrou barreiras, mesmo que tenha sido sofrido. Se a ausência de medalha olímpica é uma frustração, Edinanci sabe como sua carreira profissional foi positiva.
"Agora quero tranquilidade para transmitir todo esse conhecimento e experiência. Eu venho de uma família simples e não consegui ter uma educação formal. A minha geração, que veio do interior da Paraíba, não teve a chance de ir à escola, mesmo que fosse uma pública. Então, eu aprendi a valorizar tudo o que construí no judô. Adquiri bastante conhecimento para transmitir. Acho que isso é o que sei fazer de melhor e é o que vou continuar fazendo."
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