WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Um pequeno objeto abrigado na Universidade Harvard, uma das mais prestigiosas dos EUA, reacendeu o interesse por um dos grandes episódios da história do Brasil, a Revolta dos Malês. Trata-se de um crânio ao qual, simbolicamente, está entrelaçado também o debate sobre o racismo na produção científica.

A cabeça pertencia em tese a um dos integrantes da revolta, ocorrida em 1835 em Salvador. Liderada por muçulmanos, foi a maior insurreição de pessoas escravizadas no Brasil. No ano seguinte, o objeto foi enviado para os EUA, em um momento em que cientistas se apropriavam dos corpos de povos considerados inferiores e os utilizavam para pesquisa e ensino.

O crânio tinha passado praticamente despercebido até Harvard começar a discutir no ano passado sua coleção de restos humanos, que inclui negros escravizados e indígenas. A primeira menção à cabeça apareceu apenas em junho, em uma reportagem de um jornal estudantil da universidade. Até então, os pesquisadores nem sequer sabiam de sua existência. Em seguida, Harvard publicou um relatório oficial se desculpando e se comprometendo a estudar a devolução. Além do malê, aparece na lista o crânio de outro homem escravizado, provavelmente coletado no Rio de Janeiro em 1865 ou em 1866.

A informação chegou por meio de pesquisadores brasileiros até a comunidade negra e islâmica de Salvador, para a qual a Revolta dos Malês é uma das pedras fundamentais. Eles pedem, agora, que Harvard lhes restitua o crânio para que ele possa ser enterrado seguindo os preceitos islâmicos.

"Não importa que seja apenas uma parte do corpo, uma cabeça, uma mão, um pé. Precisa ser sepultado", diz o xeque Ahmad Abdul Hameed, líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia. "O islã não permite que uma pessoa seja exposta em um museu; é preciso respeitar o corpo humano."

Nascido na Nigéria, Hameed chegou ao Brasil em 1992. Mudou-se a convite da comunidade islâmica, que buscava um líder. A ideia era ficar alguns anos, mas ele nunca partiu. A memória da Revolta dos Malês o ancorou em Salvador. "A história dos malês é a história do Brasil", afirma. É também a sua própria. Como diversos dos participantes daquele levante do século 19, Hameed é um muçulmano de etnia iorubá. "Fiquei aqui para preservar a luta do meu povo", diz.

"Malê" era o nome dado aos escravizados muçulmanos na Bahia. A palavra provavelmente vem do iorubá "imalê", que denota um seguidor do islã. Eles se revoltaram às centenas contra o regime escravista em 1835, estremecendo o império mais de meio século antes da abolição formal. Ao final dos embates, mais de 70 foram mortos.

Apesar de seu impacto na história, a Revolta dos Malês ainda é pouco estudada e debatida. A obra de referência segue sendo o livro "Rebelião Escrava no Brasil", publicado em 1986 pelo brasileiro João José Reis -que foi professor em Harvard- e reeditado em 2003 em edição ampliada.

O interesse, no entanto, tem aumentado nos últimos anos. "É parte de uma busca da população negra por sua história, sobretudo a sua resistência contra a escravidão", diz Reis à reportagem. "O movimento dos malês virou uma chave de memória, de reforço de identidade e de protesto negro no Brasil."

Para o especialista, há uma relação entre o debate em torno desse crânio malê e um movimento mais amplo de reparações. "Essa comunidade tem todo o direito, e quase a obrigação, de exigir a repatriação dessa relíquia para ser devidamente enterrada na Bahia seguindo o protocolo islâmico."

A comunidade negra e islâmica de Salvador ainda não estabeleceu contato formal com Harvard para pedir o retorno do objeto. Reis sugere que, antes disso, seja feito um exame de DNA para determinar a origem étnica de seu dono. A ideia é confirmar que o crânio pertencia a um homem de uma das nações africanas de população muçulmana que estavam na Bahia, como os iorubás.

Misbah Akanni diz que, se for confirmada a origem do crânio, ele tem mesmo de ser devolvido. Como Hameed, Akanni é iorubá e muçulmano. Dirige a Casa da Nigéria em Salvador, uma entidade ligada ao governo de seu país. "A Revolta dos Malês foi um acontecimento muito importante para nós, e Harvard tem a obrigação de nos devolver o crânio. Não pertence a eles."

Akanni chegou ao Brasil em 1988, como um estudante de intercâmbio interessado no levante. Voltou para a Nigéria e, em 1990, estabeleceu-se de vez em solo brasileiro. "Queria recuperar nosso passado, a história dos malês, e usá-lo como base para divulgar nossa religião islâmica", afirma.

A pesquisadora brasileira Hannah Bellini, que faz um trabalho etnográfico com essa comunidade, está envolvida no processo de retorno do crânio. Ela diz que um dos primeiros passos é garantir que Harvard honre o seu compromisso "para reparar a sua contribuição ao racismo científico".

Será necessário também pleitear um espaço em Salvador para o enterro. "Não adianta trazer o crânio para ser exposto em um museu. Seria trair o propósito da campanha. Queremos oferecer um ritual fúnebre, que foi negado ao corpo naquela época", pondera Bellini. O fato de Harvard ter mantido o crânio em um museu, diz a pesquisadora, revela não apenas seu racismo científico mas também seu preconceito cultural. "A noção de expor restos mortais é, por si só, violenta."

Harvard não nega a violência de sua coleção. O gesto de reconhecer seu papel no racismo científico e na escravidão veio da própria universidade. "Estava claro desde o começo que a única saída ética era a devolução desses objetos", afirma Jane Pickering, diretora do Museu Peabody, a casa que abriga o crânio dentro da instituição. "É extremamente importante para nós."

Pickering confirma que ainda não foi procurada pela comunidade africana e muçulmana de Salvador. Insiste, porém, que está à disposição para dar início às negociações. A universidade está disposta, inclusive, a apoiar --e talvez financiar-- os testes de DNA que podem ajudar a determinar a origem do crânio. "Agora, nosso desafio é descobrir a melhor maneira de devolver esses restos mortais. Não podemos apagar o que aconteceu no passado."


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