SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em mais um capítulo do entrelaçamento das tensões da Guerra da Ucrânia com o contexto geral da Guerra Fria 2.0 entre Estados Unidos e China, a Rússia fez uma patrulha ostensiva com dois bombardeiros capazes de empregar armas nucleares perto do Japão no dia em que o premiê do país asiático visitava Kiev.

O "timing" do encontro do japonês Fumio Kishida com o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, nada tem tem de incidental: ele ocorre enquanto o líder chinês, Xi Jinping, encontra-se em Moscou visitando Vladimir Putin, o homem que mandou invadir o vizinho há quase 13 meses.

A resposta russa, mesmo que a alegação de voo rotineiro do Ministério da Defesa seja verdadeira, foi igualmente simbólica. Dois grandes bombardeiros quadrimotores Tu-95MS saíram de bases no Extremo Oriente do país para uma patrulha de sete horas sobre o mar do Japão, escoltados por caças Su-35S e Su-30SM.

Adensando o enredo, o voo ocorre um dia depois de que um caça russo interceptou dois bombardeiros estratégicos americanos B-52 na região do mar Báltico, segundo o relato de Moscou para evitar que eles invadissem seu espaço aéreo.

O Japão é um dos países mais afetados pela Guerra Fria 2.0. Rival histórico da China, ele viu sua posição de maior economia asiática ser tomada por Pequim nas últimas décadas. Aliado primário dos EUA na região, sempre buscou equilíbrio na relação.

Com o acirramento da disputa estratégica entre a China de Xi, no poder desde 2012, e os EUA, que desembocou no embate lançado como uma briga comercial por Donald Trump em 2017, o Japão caiu de vez no colo americano.

Rompeu seu antimilitarismo vigente desde a derrota na Segunda Guerra Mundial, prometeu ampliar o gasto no setor e pode até tirar da Constituição o compromisso de não usar suas forças só para se defender.

Kishida, um dos herdeiros da política do premiê Shinzo Abe, assassinado em 2022 após dois anos fora do poder, abraçou a agenda americana para o Indo-Pacífico e passou a também alertar a China contra uma eventual retomada à força de Taiwan, ilha autônoma que Pequim considera sua e que tem ameaçado militarmente.

Agora, é parte ativa do Quad, o grupo anti-China com Índia e Austrália reavivado pelo governo de Joe Biden, que também projetou a prioridade na região ao montar o pacto militar Aukus com Austrália e Reino Unido, que prevê armar Camberra com submarinos de propulsão nuclear. Prova maior da confusão, o presidente americano e seus parceiros já advertiram Xi a não fazer de Taiwan uma Ucrânia.

Tóquio está também está de olho na renovada campanha de testes de mísseis balísticos pela Coreia do Norte, aliada da China e da Rússia com agenda própria, que tem ameaçado explicitamente o Japão.

Tudo isso ocorre enquanto o drama ucraniano se desenrolava, tendo sido iniciado 20 dias depois de Xi e Putin selarem seu acordo de "amizade sem limites", que viu multiplicar o número de patrulhas aéreas e exercícios navais conjuntos no Indo-Pacífico ?manobras que já envolveram aliados próximos de Moscou, como o Irã, e também governo cuja neutralidade na guerra favorece a Rússia, como o da África do Sul.

É nesse cipoal de conexões e interesses que se insere a visita de Kishida a Kiev. Até aqui, o Japão não forneceu armamentos para os ucranianos. Segundo o Instituto para a Economia Mundial de Kiel (Alemanha), o país doou US$ 520 bilhões em ajuda humanitária e US$ 610 bilhões, em repasses financeiros até 15 de janeiro.

Já os russos têm crescentemente apontado para o que chamam de ação direta americana no conflito. Nesta terça (21), o poderoso secretário do Conselho de Segurança, Nikolai Patruchev, disse que os EUA são parte ativa da guerra.

"Perseguindo o objetivo de derrotar a Rússia, os EUA e seus vassalos continuam a reforçar o regime ucraniano com armas, e já são de fatos participantes do conflito", afirmou à agência Tass. Não é muito diferente da retórica usada por outras autoridades, como Putin, mas o tom subiu, reflexo do fato de que 75% da ajuda militar recebida por Kiev em 2022 ter vindo de Washington e o restante, de seus aliados.

Em solo, os fatos vão se acumulando. Na semana passada, um caça russo Su-27 derrubou um drone americano MQ-9 Reaper, de espionagem, sobre mar Negro em um aparente acidente durante interceptação.

Nesta terça, o comando Vostok (Oriente, em russo) das forças na Ucrânia disse que uma tentativa de ataque de Kiev na região de Zaporíjia (sul) teve orientação de artilharia em inglês, a partir de comunicações interceptadas. Não é possível saber se isso é propaganda, mas é crível, dado o grau de compartilhamento de inteligência ocidental com os ucranianos. Os russos dizem que repeliram o ataque.

Ao longo da frente, houve 21 ataques aéreos e 9, com mísseis, nas últimas 24 horas, segundo a Ucrânia. Não houve vítimas, e a violência segue intensa em torno de Bakhmut (Donetsk, leste), mas com focos renovados em torno da estratégica Adviika, na mesma área. Na Crimeia, a Ucrânia celebrou ter atingido um trem com mísseis de cruzeiro Kalibr rumo à Frota do Mar Negro, mas ainda não há confirmação independente do feito.

Já o emprego dos bombardeiros como fora de sinalização de força é uma constante em patrulhas mundo afora das potências. O risco, como no caso do drone, é uma escalada indesejada das tensões.

Na interceptação da segunda (20), próxima da Estônia, não houve queixa por parte dos americanos de má conduta do piloto. Há, afinal, regras de engajamento nesse tipo de operação: se um bombardeiro se aproxima demais de seu espaço aéreo de forma indesejada, ele é contatado por rádio ou por sinais por parte do caça rival. Caso não pare, fica sujeito a tiros de advertência e, no limite, ser derrubado.

Usualmente, o caça só precisa aparecer e escoltar o bombardeiro, ou avião-espião, à distância. É o que ocorre semanalmente nos pontos de estresse dessa malha aérea, como o Báltico, o mar Negro, o mar do Sul da China, o estreito de Taiwan, a península coreana ou o Alasca.


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