TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) - A conturbada condução da reforma da Previdência pelo governo da França evidencia uma visão enviesada do presidente Emmanuel Macron do que é uma democracia, numa versão restrita ao exercício do voto e aos procedimentos parlamentares, despolitizada e sem negociações.

Para a filósofa política Myriam Revault D'Allonnes, 80, professora emérita da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE), em Paris, e autora do livro "O Espírito do Macronismo", lançado em 2021 na França e sem tradução no Brasil, a concepção "corporativa" de governo e de sociedade de Macron se traduz em práticas "autoritárias e verticais" que incendiaram os protestos de rua contra o projeto previdenciário do governo.

De fato, as manifestações que levaram milhões de franceses às ruas vinham perdendo força quando a primeira-ministra, Elisabeth Borne, evocou o artigo 49.3 para aprovar a reforma da Previdência horas antes de uma votação de resultado incerto na Assembleia Nacional. Esse dispositivo constitucional permite que o governo aprove medidas automaticamente, sem submetê-las à votação parlamentar, e, por isso, é considerado pouco democrático.

O recurso ao 49.3 inflamou manifestantes e gerou adesões espontâneas aos protestos, que se radicalizaram desde então. O presidente jogou gasolina na fogueira quando, em rede nacional, afirmou que sindicatos opositores ao projeto não haviam apresentado propostas sobre a reforma -Macron ignorou sistematicamente os pedidos de reunião das lideranças trabalhistas.

As manifestações cresceram e se tornaram mais violentas, adotando um caráter antimacronista, para além da pauta previdenciária, o que aprofunda a crise política e social que desafia a estabilidade da França. Uma nova jornada de protestos acontece nesta terça-feira (28) em todo o país.

"O governo da França tem aumentado o uso de procedimentos que impedem os debates e que, cada vez mais, parecem enfraquecer a vitalidade democrática", avalia D'Allonnes, que é também pesquisadora associada do Centro de Pesquisas Políticas da Science Po (Cevipof).

"A tentativa de Macron de ir além das oposições que considera obsoletas (como direita e esquerda) atesta uma visão estranha à realidade da experiência política. Pois a nação não é uma 'start-up', é uma solidariedade que não se reduz a uma sociedade empresarial", afirma ela.

Para D'Allones, "os protestos atuais dão testemunho de uma profunda resistência" ao projeto político apresentado por Macron ao mesmo tempo em que implicam em risco à democracia francesa. Segundo pesquisa do Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop) divulgada na semana passada, o Reunião Nacional (RN), partido populista de ultradireita de Marine Le Pen, foi o que mais se beneficiou da insatisfação do eleitor francês. A sigla ampliou suas intenções de votos para o Legislativo mais que outros partidos de direita, centro ou esquerda.

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PERGUNTA - Quais são as principais características do que a senhora chamou de "o espírito do macronismo"?

MYRIAM REVAULT D'ALLONNES - O "macronismo" não é uma doutrina ou uma ideologia no sentido de um corpo de ideias organizado e coerente, mas, sim, uma racionalidade global, uma visão do mundo e do vínculo social. O modelo é o dos negócios e da gestão [privada]. Os indivíduos devem se comportar como "atores empreendedores": os critérios essenciais são eficiência, cálculo racional e preocupação com o desempenho. Macron apela à "inovação" em vez do progresso, ao desenvolvimento das competências em vez de um projeto político de longo prazo. O modelo corporativo torna-se o de governo, com o risco de produzir um efeito deletério, que é o da despolitização e da ausência de debate sobre as questões reais de uma sociedade democrática.

P - Como o uso do artigo 49.3 para aprovar a reforma previdenciária ilustra o macronismo?

MRD - O artigo 49.3 é um dispositivo legal que foi introduzido com a 5ª República. Recomenda-se utilizá-lo somente em casos excepcionais. Outros governos o utilizaram para evitar a proliferação de emendas que pudessem travar projetos. Mas uma "vitória" parlamentar alcançada pelo artigo 49.3 escamoteia a votação e é sempre percebida como um teste de força que enfraquece a legitimidade do regime.

Na situação atual, o governo tem aumentado o uso de procedimentos que impedem os debates e que, cada vez mais, parecem enfraquecer a vitalidade democrática. É aquilo que Laurent Berger [secretário-geral da Confederação Francesa Democrática do Trabalho], chamou de "vício democrático". O uso do 49.3 está se tornando cada vez mais mal aceito pela opinião pública, e seu uso em uma reforma fundamental como a da Previdência é sintoma da prática vertical e autoritária de Emmanuel Macron.

P - Por que os protestos contra a reforma previdenciária cristalizaram um tom antimacronista?

MRD - O que era inicialmente um protesto maciço contra uma reforma tida como desajeitada, mal preparada e sobretudo injusta, que ignora a realidade social e as condições de trabalho, transformou-se em um movimento muito mais global que manifesta, basicamente, uma recusa do tipo de sociedade proposta pelo macronismo. Essa recusa é social: desafia a visão empreendedora, alheia à social-democracia, mas que, no entanto, é cada vez mais evidente nos projetos do atual governo. Mas é também uma recusa política: o estilo de governo de Macron, vertical e autoritário, é recusado em nome da prática democrática. Além disso, sua cegueira diante da realidade e sua recusa em dialogar são percebidas como uma arrogância e um desprezo insuportáveis aos olhos da opinião pública.

P - Como o macronismo e seu modus operandi podem deteriorar a democracia francesa?

MDF - Já estamos assistindo à marcha dessa deterioração há vários anos. Macron contribuiu para reforçar consideravelmente um processo de despolitização e de desconfiança em relação às instituições. Naturalmente, a extensão do modelo gerencial ao domínio público e a generalização da forma societária são anteriores à sua eleição. Mas o que antes era um processo insidioso e arrepiante foi teorizado abertamente pelo macronismo. Ainda assim, existem hoje alguns motivos de esperança, pois os protestos atuais dão testemunho de uma profunda resistência a essa visão do mundo. Mas [os manifestantes] precisam encontrar algo mais do que a indiferença e o desprezo por parte do governo. Do contrário, correm o risco da violência e de cair na armadilha populista e autoritária.

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RAIO-X

RAIO-X | MYRIAM REVAULT D'ALLONES, 80

É especialista em filosofia ética e política, professora emérita da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE), em Paris, e pesquisadora associada do Centro de Pesquisas Políticas da Science Po. É autora de "L'Esprit du Macronisme" (o espírito do macronismo) e de inúmeros ensaios e livros, como "A Política Explicada a Nossos Filhos" (ed .Unesp, 2018), "A Verdade Frágil - O Que a Pós-Verdade Faz a Nosso Mundo Comum" (ed. Almedina Brasil, 2021) e "Le Crepuscule de la Critique" (o crepúsculo da crítica), lançado em 2022.


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