SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Com mais de 1 bilhão de usuários, o TikTok deixou há muito de ser uma plataforma de dancinhas virais. Criado pela "fábrica de aplicativos" chinesa ByteDance, é uma das poucas redes sociais ainda em expansão em um momento em que muitas grandes empresas do setor cortam recursos e funcionários. E está no centro da disputa geopolítica da vez, a Guerra Fria 2.0 protagonizada por Estados Unidos e China.
A ofensiva americana contra o aplicativo, iniciada ainda no governo Donald Trump, alcançou patamares inéditos nas últimas semanas. De um lado, ela se espalhou pelo globo, com ao menos oito aliados do país proibindo o acesso à plataforma a partir de redes governamentais só em março. De outro, a escalada das tensões entre Washington e Pequim após a crise dos balões fez os políticos americanos radicalizaram seu discurso anti-China --o que ficou evidente na verdadeira sessão de fritura do CEO do TikTok, Shou Zi Chew, no Congresso americano.
Entenda o que está em jogo na disputa e seus possíveis desfechos. As informações são de Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de relações internacionais do Centro Universitário Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), e de Luca Belli, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas e professor da FGV Direito Rio.
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Quais são as acusações dos EUA contra o TikTok?
O governo americano tem duas grandes suspeitas em relação à rede social. A primeira é que ela seja usada pelo regime chinês para espionar cidadãos americanos. Como outros aplicativos, como Facebook e Instagram, o TikTok coleta todo tipo de dados de seus usuários e usa essas informações para alimentar seus algoritmos. A diferença é que a ByteDance, dona do app, é uma empresa chinesa e, portanto, estaria sujeita a uma lei de segurança nacional que exige que ela repasse os dados ao regime caso exigido.
A segunda suspeita é dee que o algoritmo de recomendação de vídeo do TikTok, conhecido por sua capacidade de reter usuários em um looping eterno, tenha também fins de propaganda, influenciando a opinião pública ao promover ou suprimir postagens estratégicas. O senador republicano Ted Cruz resume bem essa lógica --ele já descreveu a plataforma como "um cavalo de Troia que o Partido Comunista Chinês usa para influenciar o que os americanos assistem, escutam e, em última instância, pensam".
Quando os EUA começaram a perseguir o TikTok?
Em 2020, em meio ao cerco de produtos de tecnologia chineses promovido por Trump. Naquele ano, o então presidente assinou um decreto que exigia que o TikTok vendesse seus ativos nos EUA. Do contrário, seria proibido de operar localmente.
A ByteDance chegou a procurar um comprador americano para a empresa na época, mas o decreto foi derrubado na Justiça e suspenso por Joe Biden ao assumir a Presidência. Em junho passado, porém, o democrata publicou uma nova ordem executiva, mais ampla, chamando a atenção para os perigos de tecnologias estrangeiras para a segurança nacional. Ambos os decretos se inserem em um contexto de competição cada vez mais acirrada entre Washington e Pequim no campo da inovação.
No final de fevereiro, em meio às discussões sobre banir de vez o app do território, os EUA deram prazo de 30 dias para que suas agências governamentais deletassem o TikTok de dispositivos e sistemas federais.
Quais países baniram ou limitaram o uso do TikTok? Por quê?
O movimento começou com a Índia, em 2020, durante a escalada das tensões com o regime de Xi Jinping na fronteira do Himalaia. Na época, o país vetou uma série de aplicativos chineses, incluindo o TikTok. O Paquistão já suspendeu temporariamente a plataforma ao menos quatro vezes desde outubro daquele ano por uma suposta promoção de "conteúdo imoral". O Talibã vetou a rede no Afeganistão por motivo semelhantes em 2022 --ela estaria "desviando a juventude".
Entre fevereiro e março deste ano, uma série de aliados dos EUA começaram a suspender o uso do TikTok por razões de cibersegurança. No caso deles, porém, as proibições são limitadas à utilização do aplicativo no setor público, sob a justificativa de que políticos e servidores têm acesso a informações potencialmente sensíveis em seus celulares profissionais. A lista inclui Canadá, Dinamarca, Holanda, Letônia, Noruega, Reino Unido, Nova Zelândia e as principais instituições da União Europeia.
Além deles, a Bélgica vetou a plataforma em celulares de membros do governo, mas só por seis meses, e a França baniu não só o TikTok como outros aplicativos de uso recreativo, como Instagram, Twitter e Netflix. Taiwan baniu todos os softwares de origem chinesa no final do ano passado.
Essas suspeitas fazem sentido?
Sim e não. Magnotta, da Faap, explica que a China usa tecnologias avançadas para operar uma extensa rede de vigilância. O regime alega ter como objetivo garantir estabilidade social e segurança da população, mas críticos denunciam o uso dessa rede para silenciar a dissidência e praticar censura. O temor de muitos dos governos estrangeiros que buscam limitar o uso de aplicativos chineses por questões de cibersegurança seria, assim, que Pequim os utilize para ampliar essa prática para além de suas fronteiras.
Ao mesmo tempo, como ressalta Belli, da FGV, não há qualquer evidência de que o PC Chinês tenha solicitado acesso a informações de usuários do TikTok, e o aplicativo afirma que mesmo que isso acontecesse, ele se negaria a fazê-lo. Enquanto isso, há provas numerosas de que Washington espionou seus próprios cidadãos com a ajuda das big techs, como mostraram as revelações do ex-técnico da Agência de Segurança Nacional (NSA) Edward Snowden. Por fim, em vários aspectos o TikTok tem uma autorregulação mais estrita do que as redes sociais de origem americana.
Vale notar que a plataforma não está isenta de controvérsias. Em 2019, uma reportagem do jornal britânico The Guardian mostrou que ela censurou postagens sobre a repressão ao movimento de independência do Tibete e o Massacre da Paz Celestial, entre outros capítulos sangrentos da história chinesa. O aplicativo garantiu ter mudado seu método de moderação de conteúdo desde então.
Em 2022, vários veículos americanos revelaram que funcionários da ByteDance na China e nos EUA haviam rastreado jornalistas de suas equipes para tentar identificar funcionários do TikTok que estavam vazando informações para a imprensa.
Quais foram as soluções propostas para a disputa nos EUA?
O governo americano tem dois caminhos à frente. Um deles é apoiar uma iniciativa que o TikTok já começou a implementar no país, ao custo de US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 7,6 bilhões). Chamado de "Projeto Texas", ele faria com que os dados produzidos por usuários americanos fossem restritos ao seu território ao serem armazenados pela Oracle, empresa de software em nuvem americana. Funcionários e membros do conselho da plataforma no país também passariam pelo crivo federal, num grau de fiscalização estatal inimaginável em redes sociais nativas.
Outra caminho é vetar o aplicativo, por meio do Legislativo ou do Executivo. A Casa Branca endossou um projeto de lei bipartidário chamado "Restrict", que daria ao governo autoridade para obrigar softwares estrangeiros a vender seus ativos ou bani-los se forem considerados ameaças à segurança nacional.
Ao mesmo tempo, um órgão ligado ao Departamento do Tesouro deu uma espécie de ultimato para a ByteDance vender seus ativos nos EUA. Separar-se de sua matriz e cortar de vez os vínculos com a China é visto como um último recurso pelo TikTok.
O "Projeto Texas" é suficiente para proteger dados de cidadãos americanos?
Sim, diz Belli. Outra opção válida, para o pesquisador, seria os EUA criarem uma legislação unificada de proteção de dados, como a União Europeia, o Brasil e a própria China têm. A lei regulamentaria o acesso a informações de usuários americanos de todos os aplicativos, não só os estrangeiros.
Os EUA podem banir o TikTok?
Sim, tanto por meio de decreto presidencial quanto a partir de legislação aprovada pelo Congresso. Mas ambos poderiam ser derrubados pela Justiça com base em leis que garantem a liberdade de expressão.
Em âmbito doméstico, os EUA têm a Primeira Emenda. Em nível internacional, o entrave é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, do qual Washington é signatário. Ele determina que Estados podem impor restrições à liberdade de expressão, desde que com finalidade legítima e seguindo o princípio de proporcionalidade. Apesar da segurança nacional ser, sim, uma finalidade legítima, banir totalmente um aplicativo não é considerado uma atitude proporcional.
Qual é a posição da China nessa disputa?
De forma geral, Pequim entende a ofensiva contra o TikTok como parte de uma campanha para conter a expansão de sua influência no mundo, e nega veementemente que tenha acesso a dados do aplicativo, que define como uma plataforma de entretenimento sem fins políticos.
A primeira vez em que o regime falou diretamente sobre uma possível separação entre TikTok e ByteDance foi quando Shou Zi Chew depôs no Congresso dos EUA. Na ocasião, um porta-voz da chancelaria chinesa afirmou que Pequim se opõe "firmemente" à sua venda. Isso pode indicar um entrave a uma eventual negociação, uma vez que a ByteDance precisa da autorização do regime para vender o aplicativo.
E qual é a posição do Brasil?
Um dos países com o maior número de usuários do TikTok na América Latina, o Brasil nunca se posicionou sobre o imbróglio, e tradicionalmente tenta se afastar das disputas diretas entre Washington e Pequim para não comprometer suas relações diplomáticas e comerciais com ambas as nações. Muitas vezes, porém, acaba sendo arrastado para o meio do conflito --foi o que aconteceu no leilão do 5G, em 2021, marcado por uma ofensiva de Washington contra a chinesa Huawei.
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