SÃO PAULO, SP E NOVA DÉLI, ÍNDIA (FOLHAPRESS) - O G20, que reúne as maiores economias do mundo, prepara-se para enfrentar a "cúpula do climão", em Nova Déli, na Índia, já que a Guerra da Ucrânia contaminou todas as reuniões do foro multilateral.

Até agora, nos encontros preparatórios para a cúpula do grupo, que ocorre nos dias 9 e 10 de setembro, negociadores não conseguiram chegar a um consenso para a elaboração do documento final. A Rússia, com apoio da China, não admite que comunicados incluam menções ao papel de Moscou no conflito.

Já os países do G7 ?Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido, além da União Europeia? exigem que todos os documentos, incluindo o comunicado final, a ser divulgado durante a reunião de líderes, condenem duramente o país liderado por Vladimir Putin.

A tensão é tanta que, nos encontros de preparação, não foram feitas nem as chamadas fotos de família, com a presença de todos os participantes: aliados de Kiev não aceitam posar ao lado de funcionários do Kremlin. Houve, ainda, um negociador russo que abandonou uma reunião após o tema da guerra vir à tona.

Há, ainda, a possibilidade de Putin participar presencialmente do evento, o que geraria grande mal-estar. O Kremlin tem sido vago sobre a presença do presidente na cúpula, assim como o governo da Índia. Na última segunda-feira (14), um funcionário da chancelaria indiana se limitou a dizer que a Rússia teria uma participação "plena e sólida" no encontro do G20, sem citar quem lideraria a delegação.

Nova Déli não é signatária do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), então não seria obrigada a cumprir o mandado de prisão expedido pela corte contra Putin ?o líder russo é acusado de participar da deportação em massa de crianças ucranianas, o que é considerado um crime de guerra.

Assim, o encontro seria um dos poucos eventos internacionais dos quais o chefe do Kremlin poderia participar sem medo de ser preso ?o russo não irá à reunião dos Brics na África do Sul, em 22 de agosto.

Se os líderes reunidos em Nova Déli em setembro não chegarem a um consenso, a reunião pode terminar com apenas um sumário elaborado pela presidência do grupo, expediente amplamente utilizado nas reuniões preparatórias para a cúpula. Seria, assim, a primeira vez que uma cúpula do G20 acaba sem a divulgação de um comunicado conjunto, explicitando diferenças irreconciliáveis no grupo.

O uso de sumários, porém, já foi questionado pela China, aprofundando as divisões. Após uma reunião de ministros de Energia do G20, a delegação de Pequim enviou um email aos participantes no qual disse não reconhecer como consensual nenhuma parte do documento divulgado pela presidência indiana e chamou seu processo de adoção de inválido. Segundo os chineses, a Índia violou o princípio de consenso do G20.

Para o Brasil, a forma como a Guerra da Ucrânia tem colocado travas nos trabalhos do grupo é uma péssima notícia. O país assume a presidência do G20 em dezembro e prepara uma programação ambiciosa que culminará na cúpula no Rio de Janeiro, em 18 e 19 de novembro do ano que vem.

O governo brasileiro quer fazer da presidência no G20 a consolidação da volta do país ao cenário internacional após a gestão Bolsonaro. A ideia é usar as reuniões preparatórias e paralelas ao longo de 2024 para cimentar prioridades como proteção ambiental com desenvolvimento econômico, combate à pobreza e reforma de instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Há, ainda, a intenção de atuar em temas que causam fricção. O Brasil quer lançar um grupo de trabalho para empoderamento feminino durante sua presidência, algo que Arábia Saudita e Turquia são contra.

Assim, o governo brasileiro torce para que o conflito na Ucrânia seja resolvido até assumir o G20, para não ver a guerra dominar as reuniões, sem contar um dos pontos mais espinhosos: o convite a Putin. O Brasil é membro do TPI, e, em tese, terá de cumprir o mandado de prisão se ele vier ao país.

As nações desenvolvidas, lideradas por EUA e União Europeia (UE), estão empenhadas em constranger ao máximo o chefe do Kremlin e dissuadi-lo de ir à Índia. Por isso, exigem a inclusão nos documentos da cúpula de dois parágrafos que se referem à "agressão da Rússia contra a Ucrânia", demandam "a retirada total" do território ucraniano e dizem que "o uso ou a ameaça de uso de armas nucleares é inadmissível".

No ano passado, a Rússia havia concordado, a contragosto, com a inclusão desse conteúdo na declaração conjunta da cúpula do G20 em Bali ?mas depois recuou. A China, no apoio à Rússia, afirma que o G20 é um foro essencialmente para tratar de economia, não de paz e segurança. Muitos países em desenvolvimento, como o Brasil, concordam que o grupo deveria se concentrar em temas econômicos.

O principal negociador da Índia para o G20, Amitabh Kant, deixou claro, em entrevista a um grupo de jornalistas estrangeiros da qual a Folha de S.Paulo participou, o incômodo do seu governo com a centralidade que a guerra tomou na agenda do grupo. "Existe a importante questão da Ucrânia, mas há muitas outras mais importantes. De uma perspectiva global, é muito importante trazer o desenvolvimento sustentável, a ação climática e a transformação tecnológica para o centro do debate, para podermos impactar um vasto segmento da sociedade ?sem ficarmos obcecados por apenas uma questão", afirmou ele.

A Índia, inclusive, tem mantido posição ambígua em relação à guerra no Leste Europeu. Apesar de rechaçar a violência no conflito, os indianos se abstiveram nas duas resoluções da ONU que condenaram a invasão da Ucrânia pela Rússia. E o país, que tem na Rússia uma importante fonte para compra de equipamentos militares, aumentou seu consumo de petróleo russo em meio às sanções ocidentais.

Para muitos no governo brasileiro, o G20 seguirá disfuncional até que a situação na Ucrânia seja resolvida. Mas poderia ser pior. No ano passado, países contrários a Moscou ameaçaram boicotar a cúpula na Indonésia caso a Rússia não fosse expulsa do grupo. No final, mantiveram a participação do Kremlin, e Putin não foi, sendo representado pelo chanceler Serguei Lavrov, como ocorrerá na reunião do Brics.

Desta vez, países aliados de Kiev não ameaçaram boicotar a cúpula em Nova Déli, ao menos até o momento. Como não há no horizonte de curto prazo uma outra reunião internacional em que todos esses líderes se sentarão à mesma mesa, a realização do evento em si já é muito importante. Os 19 países do grupo e a UE respondem por mais de 80% do PIB mundial e por 60% da população global.

O jornalista Ricardo Della Coletta viajou a convite do governo da Índia.


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