BRASÍLIA, DF, E WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai abrir a Assembleia-Geral das Nações Unidas na próxima terça-feira (19) com um contundente discurso em defesa da reforma do sistema de governança global. Trata-se de uma demanda histórica da diplomacia brasileira, mas que ganha força neste ano diante de críticas crescentes à ONU e da competição com outros fóruns multilaterais, como o recém-ampliado Brics e o G20.
Sintoma disso, lideranças do primeiro escalão de China, Rússia e Índia não participarão do evento, o que coloca o brasileiro na posição de "porta-voz" do Sul Global em um encontro esvaziado. Do lado das potências, os EUA são o único dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança que serão representados no encontro pelo seu presidente.
Nesse cenário, os dois presidentes, junto com o líder ucraniano, Volodimir Zelenski, estarão nos holofotes durante a semana. O evento marca ainda o retorno do brasileiro ao principal palco internacional após mais de dez anos, e da retomada da orientação internacionalista da diplomacia brasileira, em contraste com o isolamento durante o governo Bolsonaro.
A abordagem de Lula na pressão por uma reforma deve ser mais incisiva, com questionamentos a organismos e processos.
Outros temas que devem aparecer no discurso são inclusão social, combate à fome e proteção ao ambiente --em particular a defesa da soberania e da preservação da Amazônia. Lula vai chamar a atenção para a realização do Brasil da COP30, em 2025, em Belém.
Integrantes da equipe de política externa afirmam ainda que a menção à guerra entre Rússia e Ucrânia será feita de modo a não criticar e nem defender nenhum dos lados. O mandatário deve pedir "paz justa e duradoura" e uma solução para o conflito baseada no direito internacional.
Estuda-se inclusive diluir o peso desse conflito ao mencionar outros que, na visão do Planalto, recebem menos atenção internacional, como no Sudão e no Iêmen. A versão final do discurso será fechada entre a noite de domingo e a manhã de segunda-feira.
O presidente chega em Nova York às 20h de sábado e deve voltar ao Brasil na quinta. A longa estadia contrasta com a do seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que passou menos de 24 horas na cidade no ano passado.
Essa não é a única diferença com a participação brasileira no evento de 2022 --a comitiva que acompanha o petista também será muito maior. Ao menos dez ministros estarão nos EUA: Fernando Haddad (Fazenda), Marina Silva (Meio Ambiente), Nísia Trindade (Saúde), Mauro Vieira (Relações Exteriores), Luís Marinho (Trabalho), Jader Filho (Cidades), Alexandre Silveira (Minas e Energia), Cida Gonçalves (Mulheres), Margareth Menezes (Cultura) e Silvio Almeida (Direitos Humanos).
Também estarão em Nova York os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski e o presidente da Apex-Brasil, Jorge Viana.
Na agenda de Lula, está prevista a participação em um jantar oferecido pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) na noite de domingo, acompanhado por integrantes da Esplanada e pelo líder da entidade, Josué Gomes da Silva.
Na segunda, o presidente deve participar de um evento sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), uma das prioridades da ONU neste ano. No dia seguinte, ele abre o debate geral da assembleia --tradicionalmente, o Brasil é o primeiro país a falar.
Na quarta o petista tem um encontro bilateral com o presidente americano, Joe Biden, às 13h50 (horário de Brasília). Depois da reunião, os dois chefes de Estado devem assinar um pacto sobre trabalho decente na presença de líderes sindicais e da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Na quinta, o presidente participa de uma entrevista coletiva com jornalistas, e em seguida volta ao Brasil.
Após quatro anos de isolamento de Bolsonaro na Assembleia-Geral, Lula vem sendo requisitado para encontros bilaterais e eventos. Sua equipe aponta que há pelo menos 50 convites feitos. A agenda final deve ser divulgada neste sábado.
Estão encaminhadas reuniões com os chefes de Estado da Alemanha e do Quênia, além de um encontro com o secretário-geral da ONU, o português António Guterres.
Fontes no governo brasileiro apontam que há um pedido informal de encontro com Zelenski. A reunião, no entanto, ainda não foi confirmada.
A relação entre os dois é complicada. Em maio, houve uma tentativa de conversa entre os dois durante o encontro do G7, mas que acabou frustrado. O lado brasileiro argumenta que ofereceu opções de horário a Zelenski, que não pode comparecer a nenhuma. Os ucranianos atribuem a culpa a Brasília, que teria demorado a responder o pedido de reunião.
Soma-se a isso críticas mútuas de ambos os presidentes. Lula afirmou no mês passado que Zelenski e o líder russo, Vladimir Putin, tentam ganhar a guerra enquanto "pessoas estão morrendo". Em resposta, o ucraniano disse que o petista concorda com "narrativas" do Kremlin e deveria ter "uma compreensão mais ampla do mundo".
Na semana passada, o brasileiro afirmou que Putin não seria preso ao vir ao Brasil para a próxima cúpula do G20, mesmo com um mandado em aberto por ele do Tribunal Penal Internacional. O petista recuou depois da fala, mas minimizou o papel da corte e disse que nem sabia que ela existia.
A posição foi reforçada por ministros de seu governo. Flávio Dino (Justiça) afirmou que o TPI funciona de modo "desequilibrado".
"O TPI é de algumas nações e não de todas, e é esse o alerta que o presidente fez, no sentido da necessidade de haver igualdade entre os países. Ou seja: ou todos aderem ou não faz sentido um tribunal que seja para julgar apenas uns e não outros", disse o ministro.
Dino sinalizou que o Brasil poderia rever a sua participação e adesão ao Estatuto de Roma, que instituiu a corte. Países como Estados Unidos, Israel e Rússia assinaram o tratado, mas não o ratificaram.
O ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) aumentou o coro contra os países ocidentais. "Temos de ter cuidado para que o discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, transforme-se em uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento", disse em entrevista ao jornalista Jamil Chade, do UOL.
O petista emenda a viagem a Nova York com sua primeira visita a Cuba do seu novo mandato, para participar da cúpula do G77.
O país caribenho, inclusive, deve ser mencionado no discurso -é previsto que Lula critique as sanções econômicas impostas à ilha por grandes potências, como os Estados Unidos.
Essa não será a primeira vez que o presidente vai mencionar Cuba e as sanções na Assembleia-Geral. Em sua última participação, em 2009, por exemplo, ele afirmou que o embargo ao país era um "anacronismo".
"Não somos voluntaristas, mas sem vontade política não se pode enfrentar e corrigir situações que conspiram contra a paz, o desenvolvimento e a democracia. Sem vontade política persistirão anacronismos como o embargo contra Cuba", afirmou.
Sua equipe ainda avalia mencionar o perdão da dívida externa de países africanos, uma bandeira que vem sendo defendida pelo mandatário em suas falas, mas não em grandes fóruns.
O mandatário vai mais uma vez cobrar a participação de países ricos no financiamento de projetos de preservação ambiental e desenvolvimento sustentável de países em desenvolvimento que contam com florestas naturais.
COMO FUNCIONA O ENCONTRO DE LÍDERES MUNDIAIS
O que é a Assembleia-Geral?
É um dos seis órgãos da ONU e funciona como um Congresso do mundo. Cada Estado-membro --são 193-- tem direito a um voto, mas seu poder de decisão é bastante limitado, já que a maioria das questões importantes é despachada no Conselho de Segurança.
O que ela faz, então?
Uma de suas principais funções é aprovar o orçamento anual da ONU. Esse é um dos poucos tópicos no qual a Assembleia tem poder decisório e não depende de outros órgãos. Também cabe a ela aprovar a indicação do secretário-geral e dos países que vão ocupar as vagas rotativas do Conselho de Segurança. Os nomes, no entanto, costumam ser negociados com antecedência e o plenário da Assembleia apenas os ratifica.
O que é o Debate Geral de Alto Nível?
É a semana em que líderes globais se encontram em Nova York, o que geralmente ocorre em setembro. No evento, cada país pode se inscrever para fazer um discurso, que neste ano são limitados a 15 minutos, embora seja comum extrapolarem. Paralelamente ao debate geral, ocorrem outros eventos e reuniões bilaterais.
Quais são os principais temas do encontro neste ano?
A discussão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), 17 metas definidas pelos países em 2015 para serem atingidas até 2030, mas das quais o mundo ainda está muito longe. Elas envolvem por exemplo proteção ao ambiente, combate à pobreza e equidade de gênero. O secretário-geral da ONU, António Guterres, quer impulsionar os países a investirem mais dinheiro na causa. Outro grande tema deve ser o combate às sequelas da pandemia, como o aumento da fome, e a Guerra da Ucrânia.
O que faz o Conselho de Segurança?
Sua função é decidir sobre questões de guerra e paz no mundo, como a imposição de sanções contra países e as autorizações de intervenções. O órgão é formado por 15 membros, sendo 10 rotativos e 5 fixos, com direito a veto: EUA, França, Reino Unido, Rússia e China. Diferentemente da Assembleia, o Conselho tem poderes para fazer resoluções vinculantes, que não podem ser ignoradas pelos Estados.
Apenas os presidentes e primeiros-ministros de cada país votam?
Não. Os chefes de Estado e de governo só vão a Nova York, onde fica a sede da ONU, para a abertura anual da Assembleia-Geral. Essa sessão dura uma semana e consiste numa sequência de discursos. Quando os líderes retornam a seus países, quem representa cada Estado é a missão permanente na ONU, comandada por um embaixador e formada por dezenas de diplomatas e assessores.
Quais líderes não devem comparecer neste ano?
Estão fora da lista o russo Vladimir Putin (que participou pela última vez em 2015), o chinês Xi Jinping, o indiano Narendra Modi, o francês Emmanuel Macron, o britânico Rishi Sunak e o filipino Ferdinand Marcos .
Por que o Brasil faz o discurso de abertura?
Embora não seja um rito previsto por algum ordenamento, o Brasil abre a Assembleia-Geral desde 1947, quando Oswaldo Aranha, então chefe da delegação do país, presidiu a Primeira Sessão Especial. Naquele ano, foi aprovada a criação do Estado de Israel com voto favorável do Brasil.
Como é definida a ordem de discursos?
Depois do Brasil, falam sempre os Estados Unidos, por serem os anfitriões. Depois dos dois países, a ordem é definida seguindo um sistema complexo que envolve o peso das delegações e quando ocorreu a inscrição, entre outros critérios.
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