WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - As divergências sobre a guerra Israel-Hamas e sobre a Guerra da Ucrânia são a maior ameaça à coalizão pró-democracia nos Estados Unidos atualmente, afirmam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

Autores do livro de grande repercussão "Como as Democracias Morrem", os cientistas políticos lançam agora uma nova obra, "Tirania da Minoria", em que defendem que mecanismos do sistema político americano para garantir o equilíbrio de poderes viraram instrumentos de radicais para alcançar o poder, mesmo tendo menos votos, e barrar mudanças legislativas apoiadas pela maioria.

Essas instituições, chamadas de contramajoritárias, explicam por sua vez a radicalização do Partido Republicano, afirmam os autores.

Diante da perspectiva de uma eleição presidencial disputada no próximo ano entre Joe Biden e Donald Trump e das peculiaridades do sistema eleitoral americano que permitem que um candidato seja eleito mesmo perdendo no voto popular, eles defendem a necessidade de uma união de todas as forças políticas que veem no republicano uma ameaça à democracia.

Esse grupo, que se uniu para permitir a eleição de Biden em 2020, enfrenta agora uma divisão que se agrava diante da escalada do conflito no Oriente Médio. Enquanto o próprio presidente e o mainstream do partido têm se posicionado ao lado de Tel Aviv, alas mais à esquerda vêm protestando contra esse apoio e cobrando uma postura mais crítica sobre as ações do aliado na Faixa de Gaza.

"Eu quero que [Biden] saiba que, como uma palestino-americana e também como muçulmana, eu não vou esquecer isso", afirmou a deputada democrata Rashida Tlaib, em um protesto recente contra a abordagem do governo. Na última sexta (3), ela postou um vídeo acusando o presidente de apoiar o genocídio de palestinos, pedindo que ele defenda um cessar-fogo agora, "ou não conte com a gente em 2024".

Na votação de uma resolução na Câmara condenando o Hamas e manifestando apoio a Israel, nove democratas foram contrários -além de Tlaib, integram o grupo Cori Bush, Jamaal Bowman, André Carson, Al Green, Alexandria Ocasio-Cortez, Summer Lee, Delia Ramirez e Ilham Omar. Outros seis se abstiveram.

"Se nós deixarmos essas divisões separem as pessoas que basicamente precisam estar do mesmo lado para proteger a democracia, nós vamos olhar para trás e realmente nos arrependermos disso", afirmou Ziblatt durante um evento organizado pelo grupo Protect Democracy na quinta (2).

A receita de união do campo democrático, utilizada em outros países que lidam com ameaças autoritárias, é especialmente relevante nos EUA porque, em razão das especificidades do sistema político americano, minorias conseguem se sobrepor às maiorias, defendem os autores.

O principal exemplo é o Colégio Eleitoral para a eleição presidencial. Em vez de o voto do eleitor ir diretamente para o candidato de sua preferência e isso definir o resultado nacional, ele é contabilizado dentro da eleição em seu próprio estado. A depender desse resultado, os votos dos delegados a quem o estado tem direito vão para um ou outro político.

Na prática, isso significa que um candidato pode vencer a eleição, mesmo obtendo um número inferior de votos dos eleitores se fosse uma votação direta -o que aconteceu na primeira eleição de George W. Bush e na de Trump.

De acordo com Levitsky e Ziblatt, desde 1988, houve apenas uma vez que o Partido Republicano venceu uma eleição ganhando também no voto popular.

Além do colégio eleitoral, mandatos vitalícios na Suprema Corte, manobras no desenho dos distritos eleitorais (conhecidas como gerrymandering), um Senado poderoso e práticas congressuais como o filibuster, que permite que o partido minoritário bloqueie legislações, são apontadas pelos autores como elementos que travam a obtenção e exercício do poder pela maioria.

Muitos desses mecanismos existiam em outras democracias quando foram instauradas, mas ao longo do século 20, percebendo seus efeitos deletérios, os países reformaram seus sistemas. A Argentina, por exemplo, foi o último país a ter um colégio eleitoral, eliminado em 1994. O Reino Unido enfraqueceu o poder da Câmara dos Lordes, enquanto Dinamarca, Suécia e Portugal eliminaram o Senado. Nos sistemas federativos, como o alemão, a Casa foi reformada para ser mais proporcional à população representada.

"Os EUA não fizeram isso. O resultado é que os EUA são a única democracia presidencial no mundo com um colégio eleitoral. Temos o Senado mais desproporcional do mundo, exceto pela Argentina e pelo Brasil. Nenhuma outra democracia permite que uma minoria no Congresso rotineiramente vete legislações apoiadas pela maioria. E os EUA são a única democracia consolidada com nomeações verdadeiramente vitalícias para a Suprema Corte", aponta Levitsky.

Pensadas para proteger minorias, essas regras viraram um problema no século 21 conforme as divisões partidárias se consolidaram com democratas dominando áreas de concentração urbana, e republicanos, amplas zonas pouco populosas.

"Esse viés rural importa agora porque dá a um partido uma vantagem sistemática em todas as instituições políticas nacionais", diz o cientista político. "Nós chamamos isso de protecionismo constitucional."

Esse problema, defende, precede Trump, embora explique sua ascensão, e é mais profundo que o empresário. Isso porque essa vantagem embutida republicana retroalimenta o extremismo do partido ao insulá-lo, a nível nacional, das pressões competitivas de uma democracia, uma vez que o partido não precisa de uma maioria para se eleger.

Essa é uma diferença fundamental para outros sistemas democráticos, em que a teoria clássica do eleitor médio estabelece que a tendência das siglas é de se moverem ao centro do espectro político, onde está a maior parte do eleitorado, se quiserem vencer eleições.

"O Partido Republicano não está abandonando o tipo de extremismo que teria que fazer caso precisasse atrair a maioria dos eleitores. Desse modo, nossas instituições estão contribuindo para a crise republicana, a radicalização republicana, e a crise da nossa democracia", diz Levitsky.


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