SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A Suprema Corte dos Estados Unidos anunciou nesta sexta-feira (5) que vai analisar o decreto do presidente Donald Trump que tenta acabar com a chamada cidadania por nascimento --nos EUA, como no Brasil e na maioria dos países das Américas, para ser cidadão, basta nascer em território nacional, jurisprudência que Trump agora busca alterar.
O julgamento deve acontecer nos próximos meses, e uma decisão pode ser anunciada em junho ou julho de 2026. Se optar por derrubar a cidadania por nascimento, a Suprema Corte não só dará a Trump uma das suas maiores vitórias até aqui como também alterará profundamente a vida de centenas de milhares de pessoas que nascem nos EUA todos os anos.
Publicado no mesmo dia em que voltou à Casa Branca, em 20 de janeiro, o decreto de Trump definia que, a partir daquele momento, somente a pessoa com um dos pais cidadão ou residente permanente teria direito à cidadania americana. A medida foi rapidamente declarada inconstitucional: em fevereiro, um juiz federal suspendeu os efeitos do decreto, decisão referendada por tribunais de segunda instância.
Agora, o caso chega ao órgão máximo do Judiciário dos EUA --como queria o governo Trump, que aposta em uma vitória na Suprema Corte, em que há forte maioria conservadora. A maior parte dos juristas americanos, entretanto, entende que o decreto é inconstitucional e que a 14ª emenda da Constituição dos EUA é clara: "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos".
A estratégia do governo deve ser questionar o trecho "e sujeitos à sua jurisdição". A 14ª emenda é uma das chamadas emendas da Guerra Civil, pensadas para reorganizar o país após o fim da escravidão, e seu objetivo original era garantir que os escravizados libertos fossem reconhecidos como cidadãos americanos.
Desde então, o entendimento da Suprema Corte tem sido o de que a emenda vale para qualquer pessoa nascida em território nacional, com exceção de filhos de diplomatas, que têm imunidade e não estão, portanto, sujeitos à jurisdição americana. A exceção também existe no Brasil.
Ao argumentar a favor do decreto na segunda instância, o governo Trump disse que filhos de imigrantes que vivem em solo americano de forma ilegal não estariam sob jurisdição de Washington porque seus pais têm residência permanente no país de origem e "devem lealdade" a ele, não aos EUA.
Até agora, o argumento não prosperou na Justiça. Juízes federais que referendaram decisões inferiores derrubando o decreto disseram que a mudança poderia tornar apátridas centenas de milhares de pessoas nascidas nos EUA todos os anos -que perderiam direitos como acesso à educação e a programas assistenciais do governo.
Ativistas conservadores nos EUA há muito defendem a derrubada da cidadania por nascimento, também conhecida como "jus solis", ou direito do solo, sob o argumento de que ela incentiva a imigração e só existe nos países das Américas.
De fato, a maioria dos países na Europa, Ásia e África praticam alguma forma de "jus sanguinis", o direito do sangue, quando só têm direito à cidadania filhos de cidadãos do país, sejam eles nascidos em território nacional ou não.
A explicação para a diferença de legislação entre as Américas e o restante do mundo está na história do colonialismo e no desenvolvimento do nacionalismo ao redor do mundo no século 19.
Nessa época, países europeus viram surgir movimentos a favor da criação de Estados nacionais para cada povo -ideia que levou à unificação da Itália e da Alemanha, por exemplo, e incentivou a dissolução do Império Austro-Húngaro ao fim da Primeira Guerra Mundial.
Dessa forma, uma nação passou a ser definida em muitos casos pela etnia e idioma, e os países utilizaram o conceito de cidadania desenvolvido pelo Império Romano, definido pela identidade dos pais, para determinar quem seria parte da nova nação. Hoje, muitos países europeus modificaram essa interpretação restrita de cidadania.
Nas Américas, por outro lado, o desejo dos países recém-independentes de atrair imigrantes e forjar uma identidade nacional distinta das potências coloniais europeias incentivou a adoção de um conceito amplo de cidadania, não apenas restrito a um povo. Em alguns países, como os EUA, a adoção do "jus soli" também esteve relacionada ao fim da escravidão.