SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em ano de tarifaço, de ameaças do uso da força na América Latina e de sanções contra ministros do Judiciário do Brasil, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve de recalcular a rota da política externa para estabelecer canais de diálogo com os Estados Unidos de Donald Trump. Para isso, adotou postura mais discreta em temas sensíveis da geopolítica global, área na qual o presidente brasileiro havia atuado de forma assertiva no início do mandato, o que lhe rendeu críticas e acusações de parcialidade.

Lula evitou, ao longo de 2025, manifestar posições enfáticas diante de conflitos de grande escala, caso da guerra entre Rússia e Ucrânia. A inflexão contrasta com a postura do início do mandato, na qual o presidente tentou resgatar a diplomacia que marcou suas gestões anteriores descrita como que tinha como base a busca de protagonismo internacional e o fortalecimento do multilateralismo.

No último ano, o novo cenário global forçou Brasília a abandonar parte das ambições e a adotar uma postura mais defensiva e pragmática, de acordo com especialistas.

A estratégia inicial esbarrou num ambiente internacional muito mais restritivo do que nos primeiros governos de Lula, afirma Pedro Feliú, professor de relações internacionais da USP. Se, nos anos 2000, havia espaço para negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e iniciativas diplomáticas de mediação, o mundo atual é caracterizado pela crise do multilateralismo e bipolarização. Nesse contexto, tornou-se mais custoso manter uma política externa autônoma, sobretudo em relação aos EUA.

Essa limitação ficou evidente em sucessivos "nãos" recebidos pelo Brasil no atual governo Lula, diz Feliú. Não avançou a tentativa de retomada da Unasul, bloco criado em 2008 para estreitar relações de países sul-americanos e associado à esquerda na região; a Ucrânia tampouco reconheceu Brasília como mediador legítimo da guerra; e, mesmo presidindo o Conselho de Segurança da ONU, em outubro de 2023, o Itamaraty não conseguiu protagonismo comparável ao de países como Turquia, Qatar ou Emirados Árabes Unidos, que mantêm relações próximas com os EUA e atuaram na mediação de grandes conflitos.

"Vimos, a partir de 2023, o fracasso das tentativas de retomar iniciativas dos primeiros governos Lula. Então, houve ajuste das expectativas", diz Feliú, que coordena a plataforma online Polen (Política Externa em Números), com dados sobre a atuação brasileira no exterior. "O Brasil passou a ser muito mais discreto [no cenário internacional]. Essa coisa de 'ativa e altiva'? Deixa isso pra lá."

Em um cenário de tensionamento internacional sem precedentes na história recente, que criou um ambiente global menos cooperativo e travou fóruns multilaterais, o Brasil deslocou a agenda internacional para resolver problemas relacionados aos EUA de Trump, considerados mais imediatos, diz Guilherme Casarões, professor associado de estudos brasileiros na Universidade Internacional da Flórida.

Durante o ano de 2025, os governos Lula e Trump mantiveram contatos sigilosos com o objetivo de sinalizar disposição das duas partes para a negociação de pontos sensíveis. Dias antes do encontro entre os presidentes na Assembleia-Geral da ONU, em setembro, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, recebeu, por exemplo, uma visita de Richard Grenell, enviado especial de Washington para missões especiais. Não houve a divulgação de documentos nem registros públicos das agendas das autoridades.

Em paralelo, Lula não teve os holofotes internacionais, este ano, com declarações controversas sobre conflitos pelo mundo. No início do mandato, o líder brasileiro recebeu enxurrada de críticas por igualar as responsabilidades de Rússia e Ucrânia no conflito, apesar de as forças de Vladimir Putin terem invadido o vizinho. Em 2024, ele ainda equiparou a resposta de Israel em Gaza à ação de Adolf Hitler contra judeus. Tel Aviv é o maior aliado dos EUA no Oriente Médio.

Ainda assim, Casarões afirma que a postura brasileira não foi subserviente aos EUA. Ao enfrentar o tarifaço de Trump, diz, o Brasil adotou uma "altivez defensiva" para tentar se proteger da maior potência do mundo no pior momento da relação bilateral em dois séculos. A estratégia, na visão do professor, foi correta, inclusive contribuindo para a suspensão das sanções da Magnitsky.

No ano que vem, a continuidade dos esforços para distensionar a relação com os EUA continuará a ser prioridade para Lula. Como mostrou a Folha, na visão do governo do Brasil, a química entre o presidente brasileiro e Trump não deve impedir que a Casa Branca tente interferir na eleição brasileira de 2026, da mesma maneira que os EUA intervieram nos pleitos de Argentina e Honduras, por exemplo.

Os diálogos, contudo, ocorrerão num ambiente ainda de instabilidade. A nova estratégia americana para as Américas, divulgada no começo de setembro, reafirma a região como área de influência direta dos EUA, numa espécie de "Corolário Trump" da Doutrina Monroe. Isso cria grandes desafios considerando fatores centrais da política externa petista, caso da dependência comercial do Brasil em relação à China e o viés antiamericano que marcou parte dos governos Lula e Dilma, segundo o ex-embaixador do Brasil nos EUA Rubens Barbosa.

O cenário acirra a disputa por influência na América Latina. Segundo Rafael Mesquita, professor de relações internacionais na Universidade Federal de Pernambuco, a China está disposta a instrumentalizar sua posição dominante em cadeias críticas, como minerais estratégicos, para extrair concessões políticas e econômicas.

Nesse ambiente de competição entre grandes potências, a América Latina tende a sofrer mais pressão. E a margem de manobra diplomática do Brasil fica mais limitada.