SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - Revoltada. Feminazi. Faceira. Rixosa. Não é incomum o uso de um vocabulário depreciativo em e-mails e petições para se referir a advogadas que representam mulheres vítimas de violências de gênero. O que advogados de acusados desse tipo de crime chamam de estratégia, na verdade, se traduz em práticas que chegam a encerrar uma ação judicial por parte das vítimas, que se sentem acuadas e com medo. Um tipo de assédio que, depois de anos de invisibilidade, começa a sair de dentro dos processos para ocupar espaços de discussão.

A advogada Cristiane Battaglia atua hoje em um caso de divórcio para apoiar uma colega, também advogada, que se tornou alvo de sucessivas humilhações ao defender uma sobrevivente de violência doméstica. "Essa colega estava sofrendo sozinha uma pressão absurda. A tática de nos transformar em alvo é usada para desviar o foco do crime e minar a força tanto da vítima quanto da defesa dela", conta.

Cristiane sabe bem do que está falando porque já esteve no foco de intimidações: "Fui ameaçada fisicamente, depois vieram falas como 'eu sei onde você mora e onde é o seu escritório', até chegar no ponto de ele encaminhar uma representação na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), com a justificativa de que pratiquei excessos no exercício da profissão. Não havia nenhum fundamento palpável, a representação foi arquivada", conta.

Ela diz ainda que o acusado entrou com representações contra a promotora e também a outra advogada envolvida no caso. "Ele moveu ações contra todas as mulheres, só o juiz não foi representado."

Quando atuou como vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP, na gestão 2019/2021, a jurista Claudia Luna observou uma diferença crucial entre as violações de prerrogativas cometidas em relação a advogados e advogadas, principalmente as que atuam na defesa de outras mulheres.

"Esses assédios são, na realidade, violências de gênero. As agressões ultrapassam a pessoa da vítima e impactam a profissional que a está representando, como se fosse uma extensão", explica. Claudia lista as violações: "Vão desde intimidação no momento das audiências a ataques por escrito, em documentos do processo, até chegar na forma de violência processual ou assédio judicial [abertura de processo ou denúncia formal]", diz.

O QUE É ASSÉDIO JUDICIAL

Essa categoria de abuso ganhou um nome: assédio judicial ou violência processual. Importado do direito estadunidense, o procedimento judicial tem o objetivo de retaliar quem denuncia por meio do Judiciário, dificultando o andamento de algum processo e aprofundando a violência de gênero. Foi só em 2019 que o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) abriu uma jurisprudência sobre casos que envolvessem essa "tática de defesa" com intuito de silenciamento, classificando então como assédio judicial.

Não há uma lei sobre o assunto e, diferentemente das acusações de assédio sexual ou de outras formas de violência de gênero, não é possível fazer um boletim de ocorrência por causa disso. No entanto, com a decisão do STJ reconhecendo a ação como ilícita, é possível denunciar na área cível e pedir alguma punição, como o pagamento de indenização. "A ideia principal do assédio judicial é assustar e afastar as mulheres que denunciam, principalmente em casos de grande repercussão nacional, criando um certo medo", explica Tainã Góis, advogada e coordenadora do Núcleo de Direito e Diversidade da Escola Superior de Advocacia da OAB.

Tainã reforça a questão econômica como um dos pontos determinantes dessa modalidade de assédio. "Mover diversas ações judiciais contra a denunciante ou contra as advogadas, com o intuito de constranger, de ameaçar e de impedir a continuidade dos processos ou dificultar a defesa, acaba protegendo denunciados que têm maior poder financeiro, já que esse homem vai conseguir pagar o advogado. É machista e elitista", diz.

O assédio judicial é, muitas vezes, antecedido por ações fora do sistema de Justiça. Foi o que aconteceu com Maira Pinheiro, advogada criminalista e dos direitos das mulheres e integrante do coletivo Bem Viver, que defendeu um caso de grande repercussão midiática. Ela passou por perseguição e intimidação na internet. "Acessaram as minhas redes sociais a ponto de comentarem fotos da minha filha, dizendo que ela tinha azar de me ter como mãe. Fizeram ameaças, montagem com foto minha, falaram sobre meu corpo. Em julho do ano passado, precisei fazer um boletim de ocorrência porque me ligaram de madrugada dizendo que iam acabar com a minha vida e da minha filha. Foi assustador. Não chegou ao ponto de um assédio judicial, já que ninguém me processou por isso, mas houve uma omissão da defesa e tudo isso foi uma forma de me retaliar. E esse é o ponto".

Trabalhando com advocacia exclusiva para mulheres desde 2017, Gabriela Souza, advogada feminista, sócia da Escola Brasileira de Direito das Mulheres, não previu no início que sua especialidade poderia ser alvo de ataques e processos. Por mais de uma vez, recebeu representação ética disciplinar ao defender vítimas de crimes de gênero.

Ela detalha que já teve até fotos pessoais, de quando estava na praia, anexadas em processos, para justificar um "comportamento duvidoso".

QUEM AS DEFENDE?

Dados do Conselho Federal da OAB mostram que atualmente são mais de 658 mil mulheres registradas na entidade. Mesmo em maior número e representando mais da metade da advocacia brasileira, ainda não existem estatísticas com recorte de gênero que apontem um crescimento da violência processual.

Para Silvia Chakian, promotora de Justiça do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e mestre em direito penal, é fato que relatos de processos intimidadores têm aparecido com maior frequência.

"Esse contexto de gênero está muito claro porque não vem sendo reportada por advogados e defensores homens. É uma prática que se volta só contra as profissionais mulheres", afirma.

Apesar de um aparente crescimento nas ações, pouco se tem feito para brecar as humilhações e processos abusivos. Para a advogada Cristiane Battaglia, o que falta é o reconhecimento da existência desse assédio.

"O que me causa muito temor é que as juízas e juízes ainda não consigam enxergar que isso é uma forma de violência. Muitas vezes, a aplicadora do direito, que é a juíza, também está sendo acovardada pelo abusador. Então ela também acaba sendo uma vítima. Vejo um movimento atual da OAB voltado para a questão de igualdade de gênero, e existe uma recomendação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) pra que os juízes atuem de forma a limitar os abusos. Ainda assim, não temos, na prática, uma condução consistente. Acho que falta o Judiciário e o Ministério Público darem uma resposta institucional mais forte", diz.

Mesmo sendo atacada no exercício da profissão, Maira Pinheiro diz que não vai se intimidar. "Não teria escolhido um trabalho de combate ao machismo sem saber o que poderia acontecer. Defendo as mulheres no pior momento da vida delas, por sofrerem violência, e eu sei o que elas sentem porque já passei por isso também. O braço do direito que exerço, junto com outras colegas, é uma escolha fundamentalmente política e isso nos coloca numa posição muito vulnerável", afirma.

Desistir também não está nos planos de Gabriela Souza. "Entendi que o lugar de luta é um lugar de risco. Amo o que faço. Recentemente, o CNJ emitiu um protocolo para julgamento com perspectiva de gênero que nos mostra que a nossa luta está sendo reconhecida. Quando vejo uma sobrevivente de qualquer tipo de violência de gênero se reerguendo, me sinto satisfeita. Quero um dia me aposentar por falta de cliente porque aí a gente vai ter atingido a equidade de gênero. Até lá, seguimos trabalhando."


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