BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A lei que reserva vagas nas instituições federais de ensino superior para alunos de escola pública, negros, indígenas e pessoas de baixa renda completa neste mês dez anos de implementação com um acúmulo de evidências positivas. O mais novo estudo nesse sentido vem do próprio governo Jair Bolsonaro (PL), refratário a políticas de ação afirmativa.
Um relatório do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, publicado neste mês, mostra evidências de que a Lei de Cotas, de 2012, provocou maior inclusão na universidade e não houve impactos negativos no desempenho dos alunos.
Em outras palavras: a chegada de mais jovens negros e pobres nos cursos superiores públicos --em proporção mais próxima ao retrato da sociedade, que financia as instituições-- não prejudicou a qualidade das instituições. Os dados contrariam os temores que dominavam vários setores, inclusive da imprensa, na época de sua implementação.
O percentual de ingressantes de baixa renda (com renda per capita até 1,5 salário mínimo) nas instituições públicas de educação superior passou de 50%, em 2011, para 70% em 2019, aproximando-se da proporção observada na população. Para os estudantes pretos, pardos e indígenas em universidades federais, a fatia entre os ingressantes foi de 42% para 51% (variação superior ao aumento dessa população).
Também nas federais, os alunos de escolas públicas passaram de 50,4% entre os ingressantes em 2011 para 64,8% em 2019, segundo o amplo relatório produzido pelo governo. O estudo, que trata não apenas das cotas, mas de toda a rede federal de ensino superior, foi produzido por integrantes de órgãos como a CGU (Controladoria Geral da União), Secretaria do Tesouro Nacional e Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
O estudo também avaliou o desempenho de cotistas e não cotistas, ao comparar notas de ingresso, no Enem, com o Enade (avaliação federal aplicada a formandos). A conclusão, que surge alinhada a outros estudos, mostra que, embora cotistas ingressem com notas no Enem 2% a 8% inferiores aos não cotistas, esse "gap inicial" não afeta o seu desempenho.
"A nota média de cotistas no Enade é próxima ou até superior à dos demais alunos, e as taxas de conclusão de curso são semelhantes (exceto para cotistas de baixa renda, que evadem mais)", diz um dos documentos do relatório. "Por consequência, a excelência acadêmica das IES [Instituições de Ensino Superior] envolvidas parece ter sido preservada."
A lei que reserva vagas nas universidades federais demorou mais de dez anos para ser aprovada no Congresso. Foram decisivos para o avanço, além de forte mobilização de movimentos negros e de direito à educação, uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a constitucionalidade da medida, de abril de 2012, e empenho da bancada do governo Dilma Rousseff (PT) para as votações na Câmara e no Senado.
Até então já havia experiências isoladas de reservada de cotas. A primeira universidade de grande porte a reservar vagas foi a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 2003. No mesmo ano, a UnB (Universidade de Brasília) seria a pioneira a ter cotas raciais.
Levantamento da Folha feito em 2012 apurou que havia 52.190 vagas reservadas a cotistas nas universidades federais, de um total de 244.263. Mas foi com a Lei de Cotas, sancionada em 29 de agosto daquele ano, que a política passou a valer para todos cursos e turnos na totalidade de institutos e universidades federais ligadas ao MEC (Ministério da Educação).
Foi estipulado que metade das vagas deveriam ser ocupadas por estudantes de escola pública, com reservas de vagas para pretos, pardos e indígenas (de acordo com proporção de cada estado) e para estudantes com renda de até 1 salário mínimo e meio per capita.
A implementação foi progressiva, com início em 2013. Só em 2016 essa disposição foi alcançada de maneira ampla.
"Desde 2013 já se consegue enxergar mudanças, em magnitude menor, mas já tem uma quebra de tendência", explica o pesquisador Adriano Senkevics.
Doutor pela USP (Universidade de São Paulo), Senkevics tem se debruçado sobre o tema e produziu estudos, com a também pesquisadora Ursula Mello, que identificaram resultados e impactos da política. Seus trabalhos também são citados no relatório do governo.
"A lei se propõe a reservar vagas para ingressantes, e isso tem sido efetivamente eficaz. A evolução é nítida", diz Senkevics, que ressalta a necessidade de criação de bases mais sólidas sobre o desempenho dos alunos em nível nacional. O Enade, por exemplo, é aplicado em ciclos de três anos para um grupo de cursos.
Na USP, que passou a reservar vagas a partir de 2018, a diferença de notas entre cotistas e não cotistas é pequena e cai durante o curso, de acordo com pesquisa concluída neste ano.
Por ser estadual, a USP não tinha obrigação de se adequar à lei e foi a última grande universidade do país a reservar vagas. Isso ocorreu após um histórico de rejeição interna, sob argumento de haveria piora de qualidade.
A professora Rosana Heringer, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que todos os posicionamentos contrários às cotas se ancoravam mais em convicções do que em dados. "A partir de 2016, com o primeiro ciclo de cotistas se formando, temos dados empíricos, com informações palpáveis e resultados mais incontestáveis", diz ela.
Heringer coordenou, com Denise Carreira, da Ação Educativa, a pesquisa "Avaliação das Políticas de Ação Afirmativa no ensino superior brasileiro: avanços e desafios futuros". Entre outros achados, concluiu-se que o grupo que registrou a maior variação percentual no número de ingressantes por reserva de vagas foi o de negros de escola pública e de baixa renda: alta de 205% entre 2013 e 2109.
A lei prevê possibilidade de revisão do programa de acesso neste ano, uma década após seu início. Foram apresentadas nesta legislatura na Câmara 19 projetos sobre a Lei de Cotas, segundo o Observatório do Legislativo Brasileiro. Dessas, nove são favoráveis, uma é neutra e nove são contrárias, segundo o órgão. Tal disputa está centrada na manutenção ou eliminação do recorte racial.
Os números são importantes, diz Heringer, mas a principal transformação é dentro da sala de aula. "Ter alunos negros em cursos seletivos, nas universidades mais seletivas é, sem dúvida, a maior evidência de sucesso das cotas", diz. "A diferença que a lei faz é ter cotistas negros da escola pública em cursos como medicina, ter aqueles corpos, ter aquelas pessoas nas salas".
Por causa do calendário eleitoral, há expectativa de que essa revisão seja adiada no Congresso.
O governo Bolsonaro não se envolveu com o tema no Congresso. O MEC foi questionado, mas não respondeu.
Nos documentos que integram o estudo do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas há uma nota técnica da pasta. A única menção às cotas fala de um suposto desenvolvimento de estudos sobre o tema, sem mais detalhes.
O Ministério da Economia afirmou, em nota, que o "relatório de avaliação não externa a posição oficial do Governo Federal sobre determinada política pública". A função, diz, é fornecer recomendações.
No quadro de sugestões, só há itens de ampliação da política. Entre elas estão uma maior reserva de vagas para alunos de baixa, guardada a proporcionalidade de cada estado, e a possibilidade de candidatos elegíveis às cotas disputarem também na ampla concorrência.
Em 2021, 8,7 mil alunos reprovados para cotas poderiam ter sido aprovados nas vagas da ampla concorrência, diz o estudo o governo. A Folha já havia mostrado o problema em maio deste ano.
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