SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Há cerca de 30 mil anos, quando a era do Gelo ainda estava longe de terminar, uma criança que vivia na atual Indonésia passou pela mais antiga operação cirúrgica registrada até agora. A parte inferior de sua perna esquerda foi amputada com precisão e aparente higiene, permitindo que ela chegasse à idade adulta sem infecções nos ossos ou outros problemas óbvios de saúde.

As pistas que ajudaram arqueólogos a reconstruir a cirurgia pré-histórica estão descritas em artigo na edição desta semana do periódico especializado Nature. A análise ainda deixa uma série de questões em aberto, mas traz mais uma indicação importante sobre a complexidade comportamental e cultural dos primeiros Homo sapiens que colonizaram o sudeste asiático, já famosos pelo seu pioneirismo nas pinturas feitas em cavernas, por exemplo.

A equipe responsável por encontrar o esqueleto da pessoa operada tem como coordenador o especialista australiano Tim Ryan Maloney, da Universidade Griffith. Junto com colegas indonésios e sul-africanos, Maloney tem analisado os materiais achados na caverna de Liang Tebo, um grande abrigo de rocha calcária na ilha de Bornéu.

Em uma das três câmaras rochosas do lugar, os arqueólogos encontraram um túmulo cuidadosamente arranjado. Algumas pedras estavam dispostas em cima da cova, na região da cabeça e dos dois braços, como se para indicar que ali estava uma sepultura. O cadáver estava acompanhado de instrumentos de pedra e de um nódulo de ocre, pigmento muito usado para pinturas corporais entre diversos povos do Pleistoceno (a era do Gelo).

Boa parte do esqueleto estava preservado, mas não foi possível determinar com precisão o sexo do indivíduo. O certo é que a pessoa morreu com cerca de 20 anos de idade e era relativamente alta, com tamanho corporal próximo da média dos homens e bem superior à média das mulheres do período.

Apesar de ter morrido na juventude por causas desconhecidas, está claro que não foi a lesão na perna a responsável por sua morte. A análise do esqueleto mostra que o corte nos ossos, feito da metade da canela para baixo, muito provavelmente não foi acidental. Mordidas de animais ou objetos muito pesados caindo sobre a perna (um tronco de árvore, por exemplo) deixariam marcas bem diferentes e não seriam tão regulares. No caso de uma mordida, haveria alto risco de uma infecção, mas não há indícios de que algo assim tenha ocorrido.

Além disso, passou tempo suficiente para que o osso se remodelasse totalmente no lugar do corte, e para que a perna amputada ficasse atrofiada pela falta de uso. Levando tudo isso em conta, os pesquisadores estimam que a amputação teria acontecido até nove anos antes da morte do indivíduo operado.

As implicações, porém, vão muito além do fato de que a pessoa teve uma sobrevida de vários anos após a operação. A precisão do corte sugere um conhecimento considerável de anatomia, talvez ligado ao fato de que os povos do lugar tinham ampla experiência de desmembrar os cadáveres dos mamíferos que caçavam usando instrumentos de pedra.

Também é possível que eles dominassem técnicas rudimentares para estancar o sangramento copioso que um corte desses provocaria. "Talvez materiais de origem vegetal, como musgos, possam ter sido usados para isso", especula Charlotte Ann Roberts, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham (Reino Unido), que comentou o estudo a pedido da Nature.

Outro desafio seria enfrentar os riscos de infecção, ainda mais num ambiente tropical e úmido como o de Bornéu, muito parecido com o da Amazônia. Mais uma vez, a biodiversidade do local pode ter ajudado os cirurgiões pré-históricos e seu jovem paciente, os quais teriam usado plantas da região com propriedades medicinais.

O certo é que, com mobilidade reduzida, a pessoa precisou da ajuda de sua comunidade para se alimentar e para as tarefas do dia a dia ao longo dos anos. Quanto ao motivo da amputação, ainda não há dados suficientes para saber o que levou os habitantes da gruta a optarem pelo procedimento cirúrgico.


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