BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou que, devido a uma série de flexibilizações, a guia de tráfego, documento que permite aos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) o transporte de armas entre o lugar de moraria e o local de prática, se transformou em porte.
A corte de contas classificou essas flexibilizações de indevidas porque descumprem orientações contidas no Estatuto do Desarmamento. Mudanças têm sido promovidas nos últimos sete anos e intensificadas na administração do presidente Jair Bolsonaro (PL).
A inspeção foi realizada no Exército pela Secretaria de Controle Externo da Defesa Nacional e Segurança Pública do TCU para averiguar políticas e sistemas implementados para o controle e a rastreabilidade de armas em circulação no país. Ela ainda precisa ser analisada pelos ministros do tribunal.
O Exército é o responsável por emitir a guia de tráfego para os 673.818 CACs cadastrados na instituição até julho deste ano.
Já o porte de arma, que permite circular com a arma em qualquer horário e usá-la para defesa pessoal, é emitido pela Polícia Federal, para os cidadãos que conseguem justificar a necessidade. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, havia 13.341 autorizações até dezembro de 2021.
Segundo o órgão de controle, toda a situação teve início antes do atual governo, com uma instrução técnica publicada em 2015. Naquele ano, o Exército ampliou o prazo da guia de tráfego de até um ano para três anos.
"Apesar de as guias de tráfego conterem a informação de que 'não valem como porte de arma de fogo', na prática se prestam exatamente a essa finalidade em virtude do seu prazo de validade elastecido, pois não há qualquer outra exigência relativa à data, hora e duração da prática desportiva ou da caça, impedindo qualquer tipo de fiscalização por parte dos órgãos de segurança pública", apontou o TCU.
Especialistas na área da segurança pública também já alertavam que a guia de tráfego virou porte de arma devido à subjetividade da regra. Para eles, as flexibilizações anteriores somadas às normas publicadas na gestão Bolsonaro agravaram a situação.
Uma portaria do Exército de 2017, no governo do então presidente Michel Temer, permitiu que a arma do atirador fosse transportada municiada e pronta para uso entre os locais de guarda do equipamento e os de competição e treinamento.
Até então, a arma deveria estar obrigatoriamente descarregada e desmuniciada no trajeto. A arma e a munição também não podiam estar contidas na mesma embalagem.
Em 2019, a gestão Bolsonaro ampliou a autorização de transportar a arma municiada a caçadores e a colecionadores. Em 2021, outro decreto estabeleceu que o tráfego da arma independe da rota e do horário.
"Quando fica discriminado no texto que independe da rota e do horário, fica mais fácil fugir de uma fiscalização. A nova norma resguarda o CAC, que pode dizer, durante a madrugada, estar voltando de um clube de tiro. Além disso, autoriza um colecionador a andar com a arma municiada. Antes do governo Bolsonaro, essa categoria não poderia nem comprar munição", destacou Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
Para Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o propósito do Estatuto do Desarmamento era transformar o Brasil num país onde as pessoas não andassem armadas nas ruas.
"Talvez a pior medida de 2017 para cá tenha sido a criação do chamado porte de trânsito para CAC. A medida é contrária ao espírito da lei e já vem gerando problemas sociais graves. Arma dentro da vida cotidiana é a receita para o desastre", disse.
Para os especialistas, as consequências do armamento da população já aparecem no dia a dia. Em Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, um empresário foi preso por suspeita de matar um motorista com um tiro nas costas. Ele é CAC e possui três armas com o registro de atirador.
O crime ocorreu em agosto, após o empresário ter seu carro atingido pelo veículo da vítima. O automóvel do empresário, um Civic, estava estacionado na rua.
Também em agosto deste ano, um advogado foi baleado durante uma briga de trânsito em Goiânia (GO). Segundo a Polícia Militar, o suspeito era CAC e tinha autorização para portar armas da casa até o clube de tiro.
Os CACs têm aproveitado os decretos armamentistas publicados por Bolsonaro para andarem armados mesmo quando não estão a caminho dos locais de prática de tiro ou caça.
A Folha teve acesso a boletins de ocorrência da PRF (Polícia Rodoviária Federal) em que integrantes da categoria foram flagrados portando armamento em rotas irregulares, mesmo em estados onde não têm residência. Também há caso em que pessoas são flagradas armadas após uso de bebida alcoólica ou com drogas.
O TCU questiona o motivo de a guia não ser exigida individualmente para cada percurso, indicando a data, horário e local que o CAC irá para o clube de tiro, campeonato ou local de caça.
"Em virtude de as guias de tráfego serem autorizadas eletronicamente pelo SGTE [Sistema de Guia de Tráfego Eletrônica], não se vislumbra razão para que não sejam emitidas para cada um dos eventos relacionados às atividades de tiro desportivo e de caça, contendo a data e o local de sua realização, a hora de início, sua duração, devendo sua validade [ser] restrita ao evento informado pelo requerente, o que permite inclusive que tais informações sejam conferidas pelos órgãos de segurança pública junto aos clubes de tiro ou entidades organizadoras dos eventos de caça", disse no documento.
O Exército foi procurado, mas não se manifestou.
O número de armas de fogo nas mãos dos CACs chegou a 1 milhão em julho deste ano. Essas categorias têm sido as mais beneficiadas por normas editadas no atual governo.
Um mote da atual gestão tem sido a facilitação da compra de armas. Bolsonaro, além de estimular o cidadão comum a se armar, deu acesso à população a calibres mais poderosos.
O governo federal já editou 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei que flexibilizam as regras de acesso a armas e munições.
Guia de tráfego para CACs
2003
A DFPC (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados) do Exército publicou uma instrução técnico-administrativa que estabelece prazo de até um ano para a guia de tráfego de atiradores e caçadores. A validade sempre expirava em 31 de janeiro.
A arma que seria transportada do acervo até o local de prática deveria estar, obrigatoriamente, descarregada e desmuniciada.
2015
A DFPC publicou instrução técnico-administrativa que ampliou o prazo da guia de tráfego para três anos.
2017
Portaria do Exército autorizou o atirador a andar com a arma municiada e pronta para uso do local de guarda até o local de prática.
2019
Decreto expandiu a regra de andar com uma arma municiada e pronta para uso do local de guarda até o local de prática a caçador e colecionador.
2021
Decreto discrimina que independe do horário e trajeto transportar uma arma municiada do local de guarda até o local de prática.
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