TEFÉ, AM (FOLHAPRESS) - Kokamas, tikunas e mayorunas da terra indígena Porto Praia de Baixo, na margem do rio Solimões, adentraram a mata e marcaram 20 árvores com uma mensagem escrita com tinta vermelha.
"Terra indígena Porto Praia. Proibida a entrada de pessoas não autorizadas, a derrubada de madeira e a caça ilegal." A mensagem é seguida de referências a dois dispositivos legais: a lei nº 6.001, de 1973, ou seja, o Estatuto do Índio, e o artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
Os dois dispositivos tratam da demarcação de terras indígenas. Com aquele gesto, em 2021, os indígenas faziam uma autodemarcação do território, inspirados por lideranças de outras regiões na Amazônia.
"Vocês sabem que o [presidente Jair] Bolsonaro fala que não vai demarcar nem um centímetro. Vamos nos organizar", orientou o cacique Amilton Braz da Silva Kokama, 51, articulador da autodemarcação.
O gesto não altera o trâmite do pedido por demarcação. A terra indígena nem aparece no banco de dados da Funai (Fundação Nacional do Índio) para territórios cujos processos de delimitação estão em estudo. No Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a anotação sobre a reivindicação é: sem providências.
A autodemarcação, na verdade, serviu para os indígenas tentarem se proteger e proteger o território de invasores cada vez mais frequentes, em especial madeireiros, pescadores e extratores de areia. Para tal, uma guarda florestal formada por oito indígenas, que fazem rondas diárias mata adentro, foi constituída.
Os indígenas de Porto Praia foram além, porque aquele ponto do rio Solimões, que fica em geral a 30 minutos de barco de Tefé (AM), já não é o mesmo de quatro anos atrás. Invasores como madeireiros já não são as únicas ameaças. Nem são os que mais amedrontam o território.
A região está dominada por piratas, que atacam embarcações pelo Solimões. A pirataria explodiu ali, porque explodiu também o tráfego de embarcações para garimpo ilegal e narcotráfico internacional. Os moradores da terra indígena notaram que os ataques também se estenderam a embarcações mais simples, e os crimes já não se limitam ao enfrentamento entre piratas, garimpeiros e narcotraficantes.
A guarda florestal deixou de ser a única força de segurança indígena. No território autodemarcado, com intenso tráfego de piratas, uma segunda guarda foi montada. A primeira está voltada para a floresta. A segunda, para o rio. A guarda do lado do rio é formada por seis jovens indígenas de Porto Praia. Três são contratados da guarda municipal de Tefé, e três, voluntários. Armados com porretes de madeira e vestidos de preto, eles se revezam nos turnos e dividem os salários. Cada um ganha R$ 530 por mês.
Os jovens sabem que não têm estrutura para lidar com os piratas, que trafegam pelo rio armados. Policiais militares já receberam informações sobre lanchas com quatro motores e sabem que eles conseguem roubar quantidades de drogas até dez vezes maiores que as apreendidas pela polícia.
Para um agente de Tefé, que pediu para não ser identificado, diante da ausência do Estado se formou na região uma cultura de pirataria, com criminosos que "aterrorizam e abordam qualquer pessoa".
Os guardas da margem do rio costumam, à noite, ficar mobilizados em frente ao posto de saúde da comunidade. O medo é que os piratas levem a lancha do posto. Já dentro da terra indígena são comuns os flagrantes de venda de cocaína e skank, de acordo com os guardas.
Os indígenas precisaram mudar seus hábitos devido aos piratas. Quando precisam ir a Tefé, evitam embarcar de madrugada. E voltam sempre antes do anoitecer. "Hoje os piratas roubam até peixe", diz um indígena. A pesca vem sendo feita à luz do dia, como medida de precaução.
No fim de junho, uma ação numa comunidade vizinha terminou com o roubo da embarcação de um ribeirinho, que só se salvou porque se jogou na água, e a prisão dos piratas pela polícia.
As 98 famílias do território ?são 433 indígenas, segundo um documento da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena)? precisam se proteger da pirataria, dos invasores, de ações de reintegração de posse e, ao mesmo tempo, provar a relação com a terra e a própria identidade indígena.
A comunidade se formou a partir do restabelecimento de vínculos, em especial por parte de indígenas que viviam em cidades do Amazonas ?Tefé e Manaus, principalmente? e que só falam português. A escola de Porto Praia tem ensino bilíngue, numa tentativa de resgate de tradições.
Membro da guarda florestal, o kokama Davison Souza, 27, está há cinco anos na terra indígena. Nascido em Tefé, morava em Manaus. "Se estivesse em Manaus, nem sei se estaria vivo. Lá, passava fome e tinha muito preconceito, me chamavam de macaco. Aqui, não. Atravesso o rio e levo um peixe para casa."
A comunidade vive de roças, da caça, da pesca e da coleta de açaí e castanha. A autodemarcação, que contou com o apoio do Cimi de Tefé, foi vista como provocação por empresários da cidade interessados num pedaço do território para exploração de areia, prática comum no curso do rio ?à luz do dia.
Um argumento repisado por esses empresários é que os indígenas não são indígenas. "Essa terra nunca teve um dono. Uma pessoa arrendava e se sentia dono", afirma o cacique Amilton Kokama.
Num trecho da mata cobiçado por madeireiros, os indígenas, ao se prepararem para coletar castanha, descobriram um sítio arqueológico. Encontraram vasos, tampas, pedaços de cerâmica e outras peças de um cotidiano distante, hoje abrigadas nas casas da comunidade e até mesmo na escola, como enfeites.
A maior parte das peças permanece na mata. O grupo de pesquisa do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá analisou, no fim de 2019, quatro coleções, com 65 artefatos, guardadas nas casas.
No relatório do grupo, de fevereiro de 2020, a conclusão é a de que a descoberta de "cerâmicas na área da comunidade Aldeia Porto Praia, reivindicada pelo povo kokama, é uma atestação de que essa região foi anteriormente ocupada pelos povos produtores das cerâmicas arqueológicas pertencentes à fase Tefé".
A fase citada, prossegue o relatório, está "associada à tradição polícroma da Amazônia, no período provável de 500 d.C. até o contato, no século 16, o que demonstra a antiguidade indígena nessa região".
"Isso é nosso desde muitos anos", diz Amilton Kokama. "Talvez com a demarcação nos respeitem mais."
KOKAMAS TENTAM LIBERTAR FILHO PRESO POR SUSPEITA DE AÇÃO COM PIRATAS
Raimundo Moreira Filho, 64, e Maria de Fátima Mota, 63, tiveram de deixar a comunidade indígena em que viviam, no curso do médio rio Solimões, para se mudar para a periferia de Tefé. Lá, ficou mais fácil acompanhar a situação do filho, um jovem de 27 anos preso por suspeita de participar de um grupo pirata.
Todos eles são kokamas. O documento de identificação usado pelo jovem, Frankly Mota, é o registro de nascimento de indígena, fornecido pela Funai (Fundação Nacional do Índio).
A prisão alterou por completo a vida dos três. Frankly foi levado ao presídio da cidade. Raimundo e Maria de Fátima se mudaram de vez para uma casa num residencial do Minha Casa, Minha Vida abandonado e invadido, do outro lado de um braço do rio Tefé, onde vivem dezenas de outras famílias de indígenas.
A prisão ocorreu em 28 de junho. Segundo Raimundo, o mandado de prisão citava porte de armas e de drogas, e Frankly também foi acusado de estar com uma embarcação roubada por um grupo de piratas.
"A polícia entrou na área indígena, com arma em mão, e ele não reagiu. Ele estava num igarapé, ia ajudar numa massa de mandioca para fazer farinha", diz Raimundo. "Meu filho é da aldeia, de uma hora para outra se envolveu nisso. Ele foi usado." O pai foi para Tefé no dia seguinte. Segundo ele, o filho sofreu agressões após a prisão. "Bateram muito, arrastaram ele amarrado a um barco, teve afogamento."
Raimundo passou a tentar derrubar a prisão preventiva do filho. Para isso, buscou ajuda na Defensoria Pública em Tefé. Ele sabe que, por lei, deve haver adaptação de condições e prazos da prisão a costumes, local de residência e tradições indígenas, o que, segundo Raimundo, não ocorreu. A prisão de Frankly se deu no mesmo dia de um enfrentamento entre policiais e piratas, que acabaram presos.
A principal preocupação de Raimundo e Maria de Fátima, quando conversaram com a Folha, era com a transferência do filho para outro presídio. "Indígenas não podem permanecer dessa forma na prisão."
Policiais que atuam nas parcas ações contra os piratas no médio Solimões apontam o risco de cooptação de ribeirinhos e indígenas pelos grupos criminosos. Essa prática já se espraiou no alto Solimões, na região da tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, de acordo com esses policiais.
"Meu filho quer sair do presídio e voltar para a aldeia. Vou seguir tentando", diz Raimundo.
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