LÁBREA, AM (FOLHAPRESS) - O horizonte monocromático, inundado por fumaça para onde quer que se olhe e por quanto tempo se olhe, denuncia dias insuportáveis em Lábrea, no sul do Amazonas. O fogo lambe áreas desmatadas indiscriminadamente na Amazônia, num dos arcos de devastação do bioma mais ativos na reta final do mandato de Jair Bolsonaro (PL).

Nos seis primeiros dias de setembro, os satélites do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registram 1.142 focos de calor em Lábrea, uma quantidade inferior apenas ao registrado em São Félix do Xingu (PA). A cidade do Amazonas responde por uma em dez queimadas em curso no país naqueles dias.

A fumaça e as cinzas impregnam o céu, as ruas, as casas e as roupas. O dia parece não nascer direito --e acaba da mesma forma que nasce, no mesmo tom.

Mesmo habituados a esse cenário nos meses de agosto e setembro, os moradores de Lábrea e das comunidades vizinhas estão incomodados, impacientes. Eles notam um ano muito pior do que os anteriores. Em cinco dias de setembro, foram 15 mil queimadas em toda a Amazônia, ou 89% de tudo que foi registrado em setembro inteiro em 2021.

O fogo e a fumaça não cercam apenas a cidade. O avanço do desmatamento, da degradação e das queimadas --empreendidos por fazendeiros que estendem seus domínios e por grileiros habituados a agir em terras públicas-- vem cercando também indígenas isolados do sul do Amazonas, além de aldeias da terra indígena mais próxima de Lábrea, a Caititu, e de assentamentos ao lado da Transamazônica.

A região como um todo tem seis incidências de povos isolados, segundo a Focimp (Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus). O avanço do desmatamento por fazendeiros e grileiros, com fogo descontrolado, deixa esses indígenas em situação de extrema vulnerabilidade, conforme a Focimp.

O desamparo tem a mão do Estado. No governo Bolsonaro, a Funai (Fundação Nacional do Índio) passou a segurar a renovação de portarias que restringem o uso e o acesso a territórios onde vivem e circulam indígenas em isolamento, até que exista um ponto final em eventuais processos de demarcação.

É o caso da terra indígena Jacareúba/Katawixi, na região de Lábrea e Canutama (AM). O território está colado na terra Caititu e sobreposto em parte ao Parque Nacional Mapinguari.

O MPF (Ministério Público Federal) afirma que a última portaria de restrição de uso venceu em dezembro de 2021. Em março de 2022, o MPF expediu recomendação cobrando renovação por parte da Funai.

A reportagem não localizou atos de renovação da restrição de uso, e a Funai não respondeu aos questionamentos sobre ter editado ou não uma nova medida de proteção, nem a outras perguntas enviadas.

A omissão do governo Bolsonaro é logo assimilada por quem quer avançar sobre esses territórios.

"Antes, ribeirinhos e outras pessoas avisavam sobre avistamento de isolados. Agora, nestes últimos anos, não avisam, já com o propósito de que a área não fique restrita nem seja demarcada", afirma o cacique Zé Bajaga, 60, que preside a Focimp.

Com base em dados de desmatamento de abril a junho de 2022, o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) concluiu que o Parque Mapinguari era a unidade de conservação mais ameaçada da Amazônia, em razão da grande incidência de desmatamento nas bordas. A terra Jacareúba/Katawixi era a quarta mais ameaçada.

Qualquer mapa recente de desmatamento ou queimadas mostra alertas vermelhos na região chamada de Amacro (sul do Amazonas, Rondônia e Acre).

Por terra, as manchas vermelhas de um mapa ficam evidentes. Ao longo do trecho da Transamazônica (BR-230) que conecta Humaitá a Lábrea --são 215 km sem asfalto, em péssimo estado de conservação--, o cenário é de degradação da floresta nos dois lados.

Uma tática comum é a manutenção da vegetação na margem da rodovia, para dissimular a devastação mata adentro. É tanto fogo, com tanta frequência, que fica quase impossível distinguir colunas de fumaça; tudo vira uma coisa só.

As ações de fazendeiros e grileiros prosseguem apesar da presença de uma equipe da Força Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Lábrea. Nas comunidades cercadas pelo desmatamento e pelo fogo, a conclusão é uma só: a Força Nacional é incapaz de apagar incêndios e insuficiente para inibir as ações criminosas.

Tanto que o medo se espalhou por aldeias e assentamentos acessados a partir da Transamazônica.

"Esses 'gaúchos' estão na beira da terra indígena, são perigosos. Eles estão com mapas nas mãos, em áreas que dizem ser devolutas, derrubando e colocando gado", diz um indígena de uma aldeia da terra Caititu, que pede para não ser identificado.

A Caititu tem 1.100 apurinãs, jamamadis e paumaris vivendo em 24 aldeias, das quais 18 são mais próximas de Lábrea. O fogo chega até mesmo nas bordas das aldeias mais próximas à cidade.

É o caso de uma área que vem sendo queimada para a construção de casas para um loteamento. Diante do descontrole das labaredas e da incapacidade da Força Nacional --acionada duas vezes-- em controlar as chamas, indígenas precisaram agir para debelar o fogo, que quase atingiu postes de madeira da comunidade.

Numa das quatro aldeias visitadas pela reportagem, os indígenas reclamavam do início de uma frente de desmatamento para a ocupação da área por bois --e da truculência adotada na prática.

Maria dos Anjos Nogueira, 65, mora em uma das aldeias da Caititu mais próximas de Lábrea. Segundo ela, a Funai praticamente não aparece no lugar. "Muitas vezes, o desmatamento e o fogo avançam pela terra indígena. A gente não pode fazer nada. E não acontece nada."

A pressão não se resume às terras indígenas. Líderes de assentamentos ao lado da Transamazônica, na confluência com a terra Caititu, denunciaram ameaças de morte por grileiros que derrubam, queimam e ocupam áreas próximas. Segundo essas lideranças, os responsáveis pelas empreitadas são de Rondônia.

Na sede da Focimp em Lábrea, o cacique Zé Bajaga afirma à Folha que ele e a família sofrem constantes ameaças de morte.

"São esses invasores", diz. "Neste ano, recebi duas ligações. Em uma, a pessoa disse: 'Toma cuidado, está pensando que a gente não conhece você e a sua família? Você pode desaparecer'."

A Funai, onde já atuou, deixou de fiscalizar a ação dos invasores no médio Purus, segundo Bajaga. "O modelo que eles têm agora é de perseguição às lideranças indígenas."

O líder da Focimp afirma que já há vastas áreas sem mata, o que empurra o desmatamento cada vez para mais perto de unidades de conservação e terras indígenas.

A reportagem pergunta a Bajaga como ele encara as ameaças. "Não tenho medo de morrer", responde.

O cacique teme, porém, pelos indígenas isolados e diz que há relatos de assassinatos por invasores, embora sem comprovação possível em vistoria de campo feita por outros indígenas.

A Funai negou fornecer à Folha os documentos que embasam o processo para edição de portaria que restrinja os acessos à terra Jacareúba/Katawixi. O pedido foi feito via Lei de Acesso à Informação.

Para justificar o segredo, o órgão afirmou que a divulgação "coloca potencialmente em risco a vida, segurança e saúde desse povo indígena em isolamento voluntário". "Portarias de restrição de uso em geral têm por objetivo salvaguardar a vida dos povos indígenas isolados que foram noticiados na área, em vista de sua alta vulnerabilidade."

Segundo a Funai, uma interdição da área não se baseia em reivindicação para demarcação, mas na necessidade de localização e monitoramento do grupo isolado, cuja presença é "referida, ainda que não confirmada, em observância ao princípio da precaução".

A reportagem contou com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com Pulitzer Center.


Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!