SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A passageira à espera do ônibus no ponto da rua Helvétia, entre as alamedas Barão de Limeira e Barão de Campinas, olha incrédula o caminhão do lixo parando ali. Enquanto os coletores descem para recolher os sacos abertos e revirados deixados na calçada, quatro homens se atiram praticamente para dentro da parte traseira do veículo, atrás de algo que valha alguma coisa.
Um deles comemora por ter conseguido pegar uma taça de plástico rachada.
A cena vista pela passageira e pela Folha, no bairro Campos Elíseos, ocorreu na última sexta-feira (24) e retrata um dos inúmeros lados perversos que se espalha com a dispersão da cracolândia por esta região do centro de São Paulo e no seu entorno, a partir de março passado, e pelo aumento no número de moradores de rua com a pandemia-de acordo com o Censo 2021, divulgado pela prefeitura em janeiro, 31.884 pessoas viviam nesta situação na capital.
Sacos colocados nas calçadas irregularmente por moradores e comerciantes, sem qualquer separação de resíduos sólidos e recicláveis, são revirados logo após serem deixados em calçadas. E quando dá, há quem até se atire no caminhão do lixo, como os homens que iam em direção ao principal ponto de concentração de traficantes.
O drama social do lixo é um problema comum, principalmente no bairro e na vizinha Santa Cecília. Mas perde força à medida que se distancia da cracolândia-no centro histórico, por exemplo, quase não se vê nada jogado nos calçadões, conforme constatou a reportagem que percorreu quase 10 km na região central da capital na segunda-feira.
"Isso aqui piorou muito a partir da pandemia", diz o jornaleiro Guilherme Freitas, que trabalha em uma banca na rua Martim Francisco, em frente à rua Imaculada Conceição, onde há um ponto de descarte irregular.
Ele acredita que o problema cresce pelo fato de moradores de prédios próximos deixarem o lixo na calçada muito antes de o caminhão da coleta passar à noite. "Aí toda hora tem alguém que mora na rua revirando aqui."
Para Elizabeth Rico, professora do curso de ciências sociais da PUC-SP, há um problema social imenso e difícil de ser atacado que se reflete no lixo nas ruas.
"Há um encaminhamento inadequado com a atual política pública", afirma a docente sobre como a o município tem lidado com a cracolândia, com propostas de internações, inclusive compulsórias, de dependentes químicos. Ela defende mais convivência e acolhimento.
A situação interage com as falha na coleta seletiva, que vai desde o consumidor, que não separa seu lixo, o empresário, que não cria ciclo de retorno para embalagens, ao poder público.
Além disso, com o aumento da pobreza e de moradores de rua, que cresceram 31% na pandemia em São Paulo, leva pessoas a revirar sacos nas calçadas, em busca de comida ou algo que possa ser vendido para reciclagem para fonte de renda.
Sem especificar data, a Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos da prefeitura diz que a limpeza na região central será intensificada com a implementação do Projeto Área Limpa, que vai acondicionar resíduos em contêineres para posterior coleta, transporte e destinação final em diferentes turnos, a fim de reduzir o período em que ficam espalhados e expostos ao vento e chuva.
O projeto, afirma a gestão Ricardo Nunes (MDB), será estruturado em dez pontos, incluindo as áreas da Santa Cecília, Santa Ifigênia e Campos Elíseos.
"O programa também ajudará catadores e carroceiros, pois eles poderão cadastrar seus nomes nos pontos de coleta e terão mais facilidade para separar e recolher o lixo", diz o secretário Alexis Vargas.
"Estamos em contato com moradores e comerciantes para entender formas de melhorar a limpeza urbana no território", completa Vargas que nesta terça (25) afirma ter realizado uma reunião entre representantes do Programa Redenção, voltado aos dependentes químicos da cracolândia, e comerciantes da região central, na sede da prefeitura.
"O lixo é revirado 24 horas por dia no centro de São Paulo", diz o consultor ambiental Ionilton Gomes de Aragão, 53. Ele faz parte do projeto Nossa Rua, que mantém parceria com a Associação Campos Elíseos Gentil para educar sobre descarte correto e acabar com pontos viciados de descarte.
O projeto neste ano, por exemplo, acabou com um destes locais na Conselheiro Nébias, rua que já teve fluxo intenso de usuários de drogas. Para isso, além da limpeza, o projeto fez um trabalho de conscientização com quem vive ali e com carroceiros que ganhavam uns trocados para jogar ali o lixo de comerciantes que não querem pagar pela coleta.
Aragão acredita que a organização do lixo vai diminuir o número de pessoas nas ruas do centro.
Moradora há quatro anos no Complexo Júlio Prestes, na esquina entre a rua Duque de Caxias e a alameda Barão de Piracicaba, Maira Gomes, 50, afirma não saber o que é abrir a janela de casa, por causa do cheiro do lixo deixado na calçada.
"É um problema provocado pelas pessoas [moradores e comerciantes], pois o caminhão passa duas vezes ao dia. Mas é só ele ir embora, que jogam coisas novamente", diz ela, que já protocolou reclamações contra os vizinhos, inclusive, com fotos e vídeo.
A 2,5 km dali, no tradicional bairro Bexiga, Bela Vista, ruas como Santo Antônio, Conselheiro Carrão e Treze de Maio estão sempre tomadas de embalagens de isopor, bitucas de cigarro, móveis velhos e entulho.
Em 2018, um grupo de moradores mapeou 98 ruas do bairro e destas 30 estavam em alerta vermelho por causa de lixo. "Em 2019, fizemos um trabalho de conscientização, com caminhadas e reuniões com quem estava insatisfeito", diz a jornalista Nádia Garcia, 46.
A mobilização, que teve de ser interrompida com a pandemia, entretanto, surtiu efeito em apenas 3 das 30 ruas mais problemáticas.
Para Garcia, a falta de punição a bares que descartam grandes volumes nas calçadas, sem fazer a coleta correta, e que não cuidam do lixo deixado por seus frequentadores é um dos maiores problemas.
Por lei, todo estabelecimento que gera mais de 200 litros por dia de resíduos deve contratar coleta particular e não utilizar os serviços de coleta residencial.
O descarte irregular de lixo é crime ambiental e passível de multa no valor de até R$ 19.203.
Segundo a Subprefeitura Sé, foram lavradas 4.974 multas por descarte irregular de lixo e entulho na região do Bexiga desde 2019. Neste ano, até outubro, foram 1.182 autuações.
"Os catadores dizem que o lixo da Bela Vista é rico", afirma, sobre os sacos com materiais orgânico e reciclável juntos nas calçadas.
PREFEITURA DIZ QUE FAZ MUTIRÃO DE LIMPEZA
A Secretaria Executiva de Limpeza Urbana afirma que recolhe 200 toneladas de lixo por dia na região central. Também diz realizar de maneira ininterrupta os serviços de coleta e varrição nas ruas do centro.
"A cada 38 dias, acontece um serviço geral de mutirão de limpeza urbana na região. Em algumas vias, como a alameda Barão de Limeira e a rua Treze de Maio, a lavagem é feita no período vespertino e na rua dos Gusmões [onde a reportagem encontrou muito lixo revirado], duas lavagens são realizadas no período matutino e noturno", diz a nota.
Sobre a cracolândia, a gestão Ricardo Nunes (MDB) afirma que as ações do Programa Redenção têm gerado redução do fluxo de pessoas consumindo drogas nas ruas. Ele engloba ações integradas em quatro eixos de atuação: tratamento qualificado e humanizado, ações de segurança e combate ao tráfico, revitalização urbana e gestão integrada.
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