SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A atual estratégia da prefeitura e do governo de São Paulo de levar usuários de drogas que vivem na região da cracolândia para serem fichados na delegacia e de lá encaminhados para unidades de saúde tem gerado majoritariamente internações curtas, que variam de sete a dez dias.

A informação foi confirmada à Folha por Sérgio Tamai, diretor-técnico do Hospital Cantareira --exatamente a unidade para a qual os dependentes químicos são levados para iniciarem tratamento.

"São pacientes geralmente voluntários, que acabam vindo para desintoxicação. Então tem uma rotatividade grande", afirmou Tamai.

As ações são integradas com a Operação Caronte, da Polícia Civil. De acordo com a prefeitura, entre o dia 20 de setembro, quando começou a última fase da operação, e 27 de outubro, das 359 pessoas levadas pela polícia aos equipamentos de saúde, 122 foram internadas, duas delas de forma involuntária. No último dia 27, havia 28 pessoas internadas no hospital, acrescenta a prefeitura.

O plano da gestão Ricardo Nunes (MDB) para a cracolândia, revelado em setembro, previa internação de usuários avaliados com "rebaixamento de consciência" e "risco de morte".

A abordagem por meio de ação policial, porém, tem sido alvo de críticas do Ministério Público Estadual e da Defensoria Pública, bem como de entidades de defesa dos direitos humanos e de integrantes do Comuda (Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool).

O promotor Arthur Pinto Filho diz duvidar da eficácia desse tipo de ação e critica o que chama de sucateamento dos serviços voltados a essa população.

"O que dá certo é um trabalho da assistência social e da saúde, trabalho conjunto, sete dias por semana, 24 horas por dia na região. Esse pessoal, em tese, tem a confiança das pessoas que ali estão e vão em um processo de convencimento, levando-as", afirma o promotor.

"O que o Cantareira faz é tirar o camarada do momento tóxico em que ele eventualmente esteja, só isso. O objetivo dessa internação não é o tratamento de remissão [de dependência] de crack", acrescenta.

Secretário-executivo de Projetos Estratégicos do município, Alexis Vargas afirma que o tempo de tratamento é definido pelos médicos.

"A duração da internação é uma decisão exclusiva do médico, não é nossa. Ele que está acompanhando o caso, ele que decide com o paciente, de acordo com a evolução de cada um. Se ele achar que o atendimento pode continuar com a pessoa na casa dela, frequentando Caps [Centro de Atenção Psicossocial], ele manda", disse Vargas à reportagem.

Presidente do Comuda e representante do CRP (Conselho Regional de Psicologia) no colegiado, o psicólogo Marcos Muniz de Souza aponta a necessidade de investimento, por exemplo, em moradias que acolham esses usuários.

"O que dá para fazer [em 7 a 10 dias] é interromper o processo de intoxicação, tirar a pessoa desse ciclo de uso contínuo. Qual a efetividade disso? Para mim, nenhuma, porque ainda que ela saia do Cantareira e vá para o CCP [Centro de Cuidado Prolongado, recém-inaugurado, mas ainda em reforma], sai do CCP e vai para onde? Volta para a rua. É por isso que tem que ter casa, comida, atendimento de saúde mental", diz.

"Não existe solução simples para questões complexas como é a questão da cracolândia. A Operação Caronte deixa evidente a incompetência da prefeitura em promover políticas de cuidado. Quando não sabem o que fazer, internam, sempre resgatam a pauta da internação. A operação foi um desastre do ponto de vista da saúde e da assistência. Provocou a dispersão e a peregrinação dos usuários pela cidade como estratégia de cansá-los para aderirem ao tratamento", afirma.

Souza ressalta que não é contra a internação, mas diz que essa deve ser a última aposta do tratamento, quando já se esgotaram todos os recursos extra-hospitalares. Afirma também que a oferta de tratamento se dá de "maneira coercitiva".

Mesma avaliação faz a advogada Carolina Diniz, assessora do programa de enfrentamento à violência institucional da ONG Conectas Direitos Humanos.

"Essa prática de levar para a delegacia e encaminhar para hospital é praticamente a imposição de um formato de tratamento. As pessoas estão ali em uma situação de vulnerabilidade ímpar, muitas nem entendem o que está acontecendo, [pensam] 'eu vou para a prisão ou aceito tratamento que estão oferecendo?'. É uma imposição", afirma.

A prefeitura nega que faça "encaminhamento coercitivo para tratamento".

"Neste novo fluxo do Programa Redenção, quando a Polícia Civil identifica que a pessoa está necessitando cuidados de saúde, solicita o encaminhamento para avaliação da equipe da prefeitura", informa a gestão municipal, em nota. "Após avaliação clínica, é definido o procedimento a seguir, em cada caso, podendo ser encaminhado para atendimento de urgência/emergência, ambulatorial ou internação. Os usuários que têm indicação de internação são encaminhados para o Hospital Cantareira para serem reabilitados."

O Cantareira é administrado pela SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina). A prefeitura utiliza seus 101 leitos e, para isso, afirma desembolsar R$ 59 mil mensais.

Já a Secretaria de Estado da Saúde afirma que desde 2013 mantém o Programa Recomeço, que parte das premissas de "acolhimento com escuta qualificada, tratamento ambulatorial/desintoxicação ou regime hospitalar e reinserção social". Segundo a pasta, "desde 2019 foram realizadas 6,4 mil internações hospitalares e 13,1 mil acolhimentos de assistência social".

A Defensoria Pública tem ido à região da cracolândia para colher relatos de usuários. Na quarta-feira (26), durante esse trabalho na região da rua Helvétia, onde atualmente se concentra o maior número de dependentes químicos, uma equipe testemunhou o momento em que quatro pessoas foram abordadas pela polícia e levadas para o 77º DP (Santa Cecília).

Todas assinaram termos circunstanciados por uso de drogas, mas apenas uma portava entorpecente, segundo relato da defensora Surrailly Fernandes Youssef, que acompanhou os detidos. Na delegacia, os policiais apresentaram quatro cachimbos que estariam com o grupo. Após o registro da ocorrência, os detidos foram mantidos na carceragem por cerca de duas horas, ainda de acordo com Youssef.

Ela conta que foi informada de que eles só seriam liberados após encaminhamento para uma unidade de saúde da prefeitura, mas, como não havia transporte disponível, acabaram soltos depois de recusar internação.

"A Defensoria vai avaliar quais são as medidas cabíveis frente às ilegalidades constatadas durante a prisão dessas pessoas, que mesmo após a lavratura do termo circunstanciado foram mantidas em ambiente de carceragem sem qualquer justificativa legal para isso", disse a defensora.

Procurada, a Polícia Civil informou, via SSP (Secretaria da Segurança Pública), "que as pessoas citadas foram encaminhadas para a delegacia para prestar esclarecimentos. A permanência delas na delegacia foi mantida até a realização de todas as medidas de polícia judiciária pertinentes, sendo liberadas após a assinatura de um termo circunstanciado por porte e consumo de drogas em cena aberta, conforme o artigo 28 da Lei de Drogas".

De acordo com a pasta, entre 21 de setembro e 26 de outubro, "516 usuários foram autuados por uso de drogas, com a elaboração dos respectivos termos circunstanciados, ouvidos e liberados".


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