SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 30 anos, o assassinato de 111 pessoas no Carandiru, zona norte de São Paulo, gerou um sem número de teses acadêmicas, artigos, livros, filme de repercussão internacional e mudanças no sistema prisional. A própria Casa de Detenção, nome oficial do palco do massacre, não existe mais. Foi demolida há tempos.

Essas três décadas, completas neste domingo (2), só não foram suficientes para que fosse posto fim ao processo que visa a responsabilização criminal de 74 policiais militares acusados de atirar, sem necessidade, em presos encurralados no interior do chamado pavilhão 9.

O processo está em fase de definição de penas pelo Tribunal de Justiça paulista, mas o final da possibilidade de recursos -o chamado trânsito em julgado- ainda não tem previsão de quando deve ocorrer. A prisão dos PMs condenados só deve ser efetuada depois dessa data, porém isso também não é totalmente certo em razão de movimento político que tenta impedir as punições dos condenados.

Para a Promotoria, o motivo do atraso inclui uma soma de fatores: a própria complexidade do caso, pela quantidade de vítimas e de réus; a discussão sobre o âmbito do julgamento, se na esfera comum ou Justiça Militar; e a infinidade de recursos judiciais apresentados pelas partes.

"Há algumas explicações, mas, nenhuma delas justifica [tanto tempo]. É bom deixar claro que um processo, por mais complexo que seja, e este é um dos mais complexos da Justiça brasileira, não pode demorar 30 anos para ser concluído. Nada justifica. E Justiça tardia se equipara à impunidade", disse o promotor Márcio Friggi, um dos membros da Promotoria que participaram do julgamento, em 2013 e 2014.

De acordo com magistrados ouvidos pela reportagem, com a decisão dos tribunais superiores de Brasília, o Tribunal de Justiça de São Paulo deve julgar, até o final deste ano, o tamanho das penas impostas aos PMs, a chamada dosimetria. Em cinco julgamentos realizados, entre 2013 e 2014, os policiais foram condenados a penas que variam de 48 a 624 anos.

As condenações se referem a 77 assassinatos com armas de fogo. A Promotoria decidiu excluir 34 vítimas, desse total de 111 pessoas mortas, porque havia dúvida se elas foram alvo de PMs, ou atacadas pelos próprios presos, como aquelas feridas por armas brancas.

O TJ não vai mais analisar o mérito do caso, se os policiais são culpados ou não. Vão julgar se as penas aplicadas pelo magistrado de primeira instância estão adequadas. A quantidade de anos de condenação de cada réu pode, eventualmente, ser aumentada, reduzida ou permanecer como está.

Todos os policiais militares recorrem da decisão em liberdade.

Essa análise de penas só ocorre neste momento porque o STJ (Superior Tribunal de Justiça), provocado pelo Ministério Público de São Paulo, reestabeleceu, no ano passado, a decisão dos jurados que consideraram os policiais culpados pelas mortes dos presos.

As sentenças condenatórias haviam sido anuladas em 2016 pelos desembargadores Ivan Sartori, Camilo Léllis e Edison Brandão, da 4ª Câmara Criminal do TJ, que mandaram realizar novos julgamentos. O final do processo estaria, assim, ainda mais distante, se essa decisão não tivesse sido derrubada pelo STJ.

"Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do dever legal. Agora, não nego que, dentre eles, possa ter existido algum assassino", afirmou Sartori, durante a sessão há seis anos. Hoje aposentado, ele virou político ligado à corrente bolsonarista.

Os magistrados anularam os cinco júris sob a alegação de que a decisão dos jurados era manifestamente contrária às provas dos autos porque, segundo eles, não era possível dizer quais policiais foram responsáveis pelas mortes -até por falta de um confronto balístico, pela perícia.

"A conduta de cada policial não foi individualizada na ação penal; não se sabe quem fez o que; nem quem atirou em quem, e o que cada um fez no momento dos fatos", diz trecho da decisão aprovada.

O acórdão unânime da 5ª Turma do STJ, com relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, discordou desses argumentos. Para o STJ, a tese da acusação sempre foi a de que os PMs se juntaram "com ânimo homicida", entraram no pavilhão e efetuaram disparos contra os presos.

Não havia, assim, por parte da acusação, a tentativa de individualizar condutas.

Nos quesitos apresentados aos jurados, ainda segundo o STJ, foi questionado se os réus participaram do crime com "unidade de desígnios"; se juntaram para atacar os presos, contribuindo todos para "o resultado morte". "A resposta dos jurados foi positiva para a maioria das séries", diz acórdão do STJ.

"Ao contrário do que constou no acórdão recorrido, a condenação dos policiais pelos jurados decorreu da constatação do liame subjetivo [diga-se de passagem que foram 5 júris, todos 'condenatórios']. Com base na prova dos autos e no alegado em plenário, os jurados responderam afirmativamente ao quesito da autoria que contemplava indagação sobre a unidade de desígnios", finaliza.

A procuradora aposentada Sandra Jardim, uma das responsáveis pelos recursos ao STJ, disse que a decisão de Ivan Sartori e dos colegas de Câmara só conseguiu atrasar ainda mais o andamento do processo e aumentar a descrença da sociedade pela Justiça.

"Essa decisão só contribuiu para a falta de crença da sociedade na Justiça, como uma entidade capaz de solucionar os problemas. Uma decisão que só veio para procrastinar o feito, porque não tinha lastro nenhum no ordenamento jurídico", disse.

Para desembargadores, procuradores e promotores ouvidos pela reportagem, a decisão do STJ do ano passado e, também, a do STF (Supremo Tribunal Federal) em agosto passado (negando recurso contra essa decisão do STJ) puseram fim, em tese, à discussão sobre o mérito.

Isso significado que os PMs são considerados culpados e, assim, não podem mais recorrer quanto a isso. Só podem reclamar, agora, do tamanho das penas impostas a eles.

Mesmo com a decisão sobre a dosimetria, os policiais não vão começar a cumprir suas penas imediatamente. Isso porque, a 4ª Câmara Criminal do TJ passou a seguir entendimento do STF de apenas mandar prender os réus após o trânsito em julgado, e não mais após a decisão em segunda instância.

Como o STJ e STF já se manifestaram sobre o assunto, esse trânsito não deve demorar tanto, avaliam os promotores e magistrados ouvidos.

Isso não quer dizer, porém, quer o assunto estará resolvido. Há risco de os PMs não cumprirem suas penas porque tramita na Câmara projeto de lei que propõe a concessão de anistia a esses policiais. A Comissão de Segurança da Câmara Federal aprovou, em agosto deste ano, parecer favorável a ele.

Entre os argumentos encontrados no parecer do deputado Sargento Fahur (PSD/PR) estão a falta de individualização de condutas no processo e, também, a necessidade da invasão ao presídio para acabar com a rebelião e que "permitiu a neutralização de 111 criminosos da mais alta periculosidade".

"Esse parlamento não deve se furtar do dever de protegê-los de punições com motivações ideológicas, abjetas e repudiáveis que buscam 'justiça' à estupradores [sic], assassinos e traficantes que foram neutralizados por enfrentar a policia [sic] naquele dia", diz trecho do parecer do sargento, que sugere homenagem aos PMs condenados.

A reportagem tentou contato com o advogado Celso Vendramini, que participou da defesa dos PMs envolvidos no caso Carandiru, mas ele respondeu apenas que deixou o caso.

A advogada Ieda Ribeiro de Souza, outra que participou da defesa dos PMs, também foi procurada pela reportagem. A família disse que ela está hospitalizada e sem condições de falar.


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