SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) - Nove meses após deixar Salvador, o veleiro Fraternidade retornou para casa com a façanha de ter sido a primeira embarcação do tipo saída do Brasil a completar a Passagem Noroeste, uma perigosa ligação do oceano Atlântico com o Pacífico, por meio do Ártico.

A passagem fica localizada próxima ao Círculo Polar Ártico, ao norte do Canadá, na região que possibilita a junção do estreito de Bering ao de Davis. A travessia de quase 5.000 quilômetros só pode ser feita nos meses mais quentes do verão.

"Quando saí daqui, não sabia se voltava vivo. Mas fomos assim mesmo. No caminho, tive muitas dúvidas, mas, no final, deu tudo certo", disse o capitão do veleiro, o ucraniano radicado na Bahia Aleixo Belov, ao desembarcar no sábado (12), na capital baiana.

O capitão saiu do Brasil acompanhado do marinheiro Osvaldino Dórea (Lito), da oceanógrafa Larissa Nogueira, do fotógrafo Leonardo Papini, da estudante Ellen Brito, do mecânico Hermann Brinker e do engenheiro civil Maurício Pitangueiras.

O temor de Belov tem fundamento, já que, não raro, expedições pela passagem, quando não abortadas, costumam terminar em tragédia. A mais famosa delas resultou no desaparecimento de 128 pessoas sob o comando do explorador inglês John Franklin, em 1845.

Para chegar lá, conta Belov, a tripulação de sete pessoas passou por Natal (RN), Caribe -onde cruzou o Canal do Panamá- e Havaí. Depois de subir a costa do Canadá pelo Pacífico, passou pelo Alasca no mar de Bering até chegar ao Ártico.

No retorno ao Brasil, a expedição seguiu ainda por Groenlândia, arquipélago de Açores -território autônomo de Portugal-, novamente Natal e, por fim, Salvador, em uma viagem que totalizou 20 mil milhas náuticas (ou 37 mil quilômetros).

Com cinco voltas ao mundo no currículo, três delas sozinho, Belov diz que a mais recente expedição tem um sabor especial por causa do risco. Para se ter ideia, em 2018, das 23 embarcações que tentaram a rota, apenas uma conseguiu completar o trajeto com sucesso.

"Pelos trópicos, é bem mais fácil. Primeiro, porque o caminho é bem conhecido, é cheio de de porto para parar. Previsão do tempo boa, cartas náuticas boas", explica. "Lá em cima [no Ártico], tá tudo congelado. Abre rapidinho. Ou você passa ou fica preso", continua.

No início de agosto, conta Belov, o veleiro acabou preso a um bloco de gelo, por dez dias, à espera de uma brecha no mar para seguir viagem. "Eu comprei comida para um ano e meio, porque, se ficasse preso, só sairíamos na primavera do próximo ano", diz.

Além do trabalho em equipe, o sucesso da jornada se deve também ao veleiro de 80 toneladas, com casco de aço de 20 metros de comprimento revestido com 12 centímetros de espuma isolante térmica, para proteger a tripulação do frio.

A embarcação desenhada pelo próprio Belov --que é engenheiro civil e foi professor da Universidade Federal da Bahia-- tem, ainda, um motor potente com uma cabine confortável como uma casa, com estrutura para acomodar um total de 12 pessoas, informou.

"O barco é bom, preparado para tudo, mas quando vinha um temporal, com ondas enormes, a gente não tinha onde se esconder", recorda. "O barco pequeno tem mais possibilidade de se abrigar, até mesmo de ser puxado para cima do bloco de gelo", observa.

O planejamento antecipado da expedição também foi fundamental para o êxito da missão, conta o navegador. "Na verdade, eu pensava nela há 20 anos, mas o planejamento foi detalhado há três e só não fomos antes devido à pandemia", revela.

Para além dos perrengues vividos pela tripulação saída da Bahia, a viagem foi permeada de belas paisagens, calotas polares, avistamentos de diversas espécies de baleias, ursos polares ameaçados de extinção e pássaros nativos da região norte.

Desembarques de alguns tripulantes abriram espaço para o navegador argentino Igor Stelli, a terapeuta Ialda Stelli, o médico Fábio Tozzi, o empresário Antônio Barreto, o engenheiro Dilson Assumpção, o velejador Alberico Soares e a estudante alemã Luísa Steckhan.

O trajeto foi marcado, ainda, por encontros, a exemplo do ocorrido com o paulista Beto Pandiani e o franco-brasileiro Igor Bely, que fizeram parte do percurso da passagem em um catamarã à vela, sem motor, a partir do Canadá.

Na bagagem, além das histórias, Belov trouxe alguns artigos adquiridos junto a comunidades de esquimós, como chifres de alces e uma pele de urso. "Que irão para o acervo do museu", disse, em referência ao espaço que leva o nome dele, no centro histórico de Salvador.

Belov nasceu em 1943 em Merefa, na Ucrânia, durante a Segunda Guerra Mundial, quando deixou sua cidade natal aos sete meses. Filho de mãe ucraniana com pai russo, chegou ao Brasil em junho de 1949, já aos seis anos, depois de perambular pela Europa.


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