SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Músicos e fabricantes de instrumentos musicais do mundo todo acompanharam com apreensão os debates do encontro deste ano da Cites (Convenção Sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas, na sigla inglesa), que terminou no dia 25 de novembro no Panamá.
Estava em jogo o destino do pau-brasil (Paubrasilia echinata), árvore sob risco de extinção cuja madeira é considerada indispensável para a fabricação dos arcos profissionais de instrumentos como violinos e violoncelos.
Havia a proposta de colocar a espécie na categoria mais restritiva da Cites, que proibiria qualquer forma de transação comercial envolvendo exemplares obtidos na natureza. Negociações envolvendo o Brasil, a União Europeia e os EUA evitaram essa reclassificação.
O principal desafio, porém, vem agora: encontrar maneiras de recuperar as diferentes populações de pau-brasil na mata atlântica e, ao mesmo tempo, de produzir comercialmente sua madeira, altamente valorizada pelas grandes orquestras do planeta.
A Cites compila uma série de listas de espécies, chamadas de apêndices, aprovadas pelos países signatários da convenção. Os apêndices envolvem diferentes restrições para o comércio de animais e plantas e de produtos derivados deles.
Na reunião de 2022 no Panamá, designada como a 19ª COP (Conferência das Partes) do tratado, o governo brasileiro, por meio do Ibama, originalmente tinha proposto que o pau-brasil saísse do Apêndice 2 (categoria de proteção intermediária) para o Apêndice 1 (o mais rigoroso).
Hoje constam do Apêndice 1 espécies como o panda-vermelho, o elefante-asiático e uma espécie de araucária que ocorre no Chile e na Argentina.
"Se isso fosse aprovado, um músico de orquestra não conseguiria fazer viagens internacionais trazendo consigo um arco de pau-brasil", diz Daniel Neves, presidente da Anafima (Associação Nacional da Indústria da Música).
"Os luthiers [artesãos que fabricam e consertam instrumentos de corda] teriam problemas para reformar um instrumento. Seria extremamente complicado."
A madeira de pau-brasil confere características mecânicas únicas ao arco usado para tocar os instrumentos de corda, segundo Neves, em especial no que diz respeito à vibração do instrumento.
"A madeira de ipê chega perto em alguns aspectos, mas não o suficiente. Todos os músicos dizem que não tem comparação ?o arco de pau-brasil é um instrumento de precisão."
Segundo o luthier André Amaral, a boa elasticidade proporcionada pela madeira de pau-brasil é uma das chaves de seu status especial para os músicos.
"Há também a questão da densidade, que depende do tipo de instrumento", explica ele. "Uma madeira mais densa é destinada aos arcos de violoncelo, enquanto as menos densas são preferidas para a fabricação de violinos e violas."
Amaral conta ainda que técnicas usadas para medir a elasticidade de pontes de madeira foram adaptadas para medir a qualidade das varetas dos instrumentos. Substitutos sintéticos em geral são usados apenas em instrumentos musicais amadores.
Segundo Haroldo de Lima, pesquisador aposentado do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, na década de 1980 muitos acreditavam que a árvore estava praticamente extinta no país. Levantamentos feitos ao longo da costa brasileira, porém, revelaram que ainda havia diversas populações naturais da espécie em estados do Nordeste e no Rio de Janeiro.
Os pesquisadores descobriram ainda que há cinco populações geneticamente distintas de pau-brasil, com diferentes características das folhas e que podem representar, na verdade, mais de uma espécie.
"Descobrimos que as populações ocorriam em locais restritos porque precisavam de condições climáticas e de solo bastante especiais, mas, nessas áreas, as árvores eram relativamente abundantes, com muitos indivíduos", conta ele.
Mesmo assim, a situação era preocupante, o que levou à inclusão inicial do pau-brasil no Apêndice 2 da Cites.
Também começaram a se fortalecer iniciativas para a produção de mudas da espécie por parte dos produtores de arcos, ou archetários, como são chamados. Há projetos desse tipo em Pernambuco, na Bahia e no Espírito Santo.
"Ficou claro para eles que, se algo não fosse feito, a espécie ia desaparecer", diz Lima. "De fato, os archetários são os únicos que estão plantando hoje ?não todos, mas muitos deles fazem um trabalho sério", analisa o pesquisador do Jardim Botânico.
Segundo Neves, da Anafima, cerca de 500 mil mudas foram plantadas do ano 2000 para cá. É um investimento de longo prazo, já que a madeira só alcança a qualidade adequada para o uso nos instrumentos musicais após várias décadas de crescimento da árvore.
Ele argumenta que, como dois metros cúbicos de madeira são suficientes para toda a produção anual brasileira de arcos, ainda vai ser possível abastecer o mercado com estoques antigos, bem como através de outras fontes, como madeira de demolição.
"Na situação atual, mudar a classificação do pau-brasil do Apêndice 2 para o Apêndice 1 faria pouca diferença porque infelizmente o país não fez a lição de casa", analisa Haroldo de Lima.
Para ele, além de mapear melhor os estoques de madeira e proteger as populações naturais, falta investimento em pesquisa para saber se é possível propor o corte seletivo de forma sustentável, a exemplo do que é feito com outras árvores.
"Não adianta fazer apreensões pirotécnicas de madeira, como às vezes acontece, sem fazer tudo isso", afirma.
A decisão aprovada na COP do Panamá, após debates num grupo de trabalho, estabelece que os arcos finalizados no Brasil só poderão ser exportados pela primeira vez por meio de uma permissão emitida pela Cites (a decisão não se aplica a "reexportações", ou seja, a arcos fabricados no Brasil, vendidos para outro país e, depois disso, exportados novamente para um novo destino).
Os países signatários da Cites e os grupos ligados à indústria da música também se comprometeram a fazer um mapeamento mais detalhado dos estoques legais de madeira, criar sistemas para rastrear instrumentos produzidos dentro da legislação e apoiar esforços para a conservação da espécie e a produção comercial sustentável de pau-brasil.
Em comunicado oficial, o Ibama afirmou que a permanência do pau-brasil no Apêndice 2 foi compensada "com uma anotação mais detalhada e restritiva que permita assegurar o controle do comércio das peças já produzidas e o combate ao tráfico e à extração ilegal".
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