SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Nós treinamos para matar" é o título de um texto disponível na internet e assinado por Lucas Silveira, que se identifica como instrutor-chefe da ABA (Academia Brasileira de Armas), propondo uma "introdução à mentalidade de combate".

Apesar de o artigo soar como um tutorial para a guerra, Silveira, também conhecido como "Monge do Tiro", propõe a estratégia para o dia a dia, em eventuais confrontos de pessoas comuns com criminosos, usando para isso o argumento da legítima defesa.

Outros instrutores e clubes de tiro oferecem capacitação para confrontos urbanos, incluindo para pessoas com registro de CAC (sigla para caçador, atirador desportivo e colecionador), que até julho deste ano já reuniam 1 milhão de armas de fogo no país.

Os cursos são facilmente encontrados na internet. Nem Silveira nem a ABA constam como instrutores e locais de capacitação credenciados pela Polícia Federal, conforme lista disponibilizada pela instituição. Questionado sobre isso, por meio de mensagem, ele não comentou.

Silveira produz vídeos ensinando técnicas e diz oferecer treinamento em tiro, de forma individual ou em grupo, para todos os níveis. Em suas explanações, evita usar o termo defesa, trocando-o por "combate".

Ele argumenta que defender a própria vida é considerado um excludente de ilicitude, sendo muitas vezes a única opção em situações de risco. "Quando você se dispõe a não reagir, automaticamente passa o seu poder de decisão para alguém que tem o crime como modo de vida", afirmou à reportagem.

O instrutor informal diz "não ser natural" atirar e, com possível consequência, matar outra pessoa. Por isso, ele afirma ensinar seus alunos "a estarem prontos" para essa ação. "É algo que é feito numa fração de segundo. É possível que ocorra um erro [de medida], mas a outra opção é a de que eu morra."

Especialistas em direito ouvidos pela reportagem afirmam que as orientações de Silveira ferem o conceito de proporcionalidade, que define os limites entre o cumprimento da lei e eventuais crimes.

Além de Lucas Silveira, que oferece cursos no Paraná e em Santa Catarina, a reportagem entrou em contato com um homem que se identifica como sargento Eleutério.

Ele divulga, via mensagens de texto, o 1º Curso de Mentalidade de Sobrevivência no Combate Armado, agendado para janeiro de 2023, em um clube de tiro em Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo.

Pagando R$ 950, o aluno poderá aprender, segundo a divulgação, "técnicas de combate armado".

Procurado pela reportagem, Eleutério afirmou, por mensagem de texto, que o curso objetiva ensinar técnicas para o "uso correto" de armas "em situações adversas".

O procurador Márcio Sérgio Christino, do Ministério Público de São Paulo, afirma que os cursos apresentam de forma "completamente equivocada" a questão da legítima defesa. "A legítima defesa é a oposição a uma agressão iminente e injusta. O que está fora do conceito é você propor a ação, como é feito nestes cursos", argumenta.

Para Ivana David, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, os vídeos com técnicas de combate urbano e cursos com essa proposta colocam o uso de armas como uma situação de vingança, desvirtuando a interpretação jurídica da legítima defesa.

Ela acrescenta que o "caldo jurídico" relacionado ao acesso às armas é "muito perigoso". "A sociedade vira refém de um indivíduo que está armado, desconhece os limites da legítima defesa, mas tem uma arma de fogo."

Desde 2018, o governo Jair Bolsonaro (PL) já editou 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei que flexibilizam as regras de acesso a armas e munições.

Matheus Falivene, doutor em direito penal pela USP, diz que esse tipo de curso pode fazer com que os alunos pratiquem crimes, como homicídio, em vez de se defenderem.

Para o policial federal e especialista em gestão de Segurança Pública Roberto Uchôa, quem paga para fazer um curso de combate deseja circular armado, já com o objetivo de resistir a uma situação como um assalto. "Como policial, na ativa, posso dizer que a minha arma é instrumento de trabalho e não uma ferramenta de compensação de frustração pessoal", afirma, acrescentando não andar com arma fora de serviço.

Entre janeiro e setembro deste ano, dez policiais militares de folga morreram, ao reagirem a roubos no estado de São Paulo, segundo a corporação. Isso representa 66,6% do total de 15 agentes mortos, fora de serviço, no período.

Em nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo afirmou que a orientação geral das polícias Civil e Militar é a de não reagir a roubos ou qualquer outra forma de violência que coloque a vida das pessoas em risco.

No último dia 12, o CAC Thomas Duarte, 33, matou um suspeito de roubo, com um tiro na nuca, alegando legítima defesa nos Jardins, zona oeste paulistana. O caso, investigado pelo 78º DP (Jardins), foi captado por câmeras de monitoramento. A delegacia afirmou por meio de nota, na quinta-feira (17), realizar diligências para esclarecer "a dinâmica dos fatos."

Sobre como monitora instrutores, a Polícia Federal enviou um link em que constam listas com pessoas e locais credenciados pela instituição. A reportagem enviou o acesso ao canal do Youtube de Lucas Silveira, perguntando como a PF fiscaliza cursos de tiro oferecidos na internet, mas ela não comentou.

O Exército, responsável pela licença para os CACs, afirmou por email caber-lhe "recepcionar o atestado de capacidade técnica do interessado" em conseguir o registro. A instituição não comentou sobre como fiscaliza os atiradores esportivos.

O Youtube, onde o instrutor Lucas Silveira mantém vídeos, afirmou não permitir "conteúdo perigoso ou nocivo". Caso identifique algum material que viole suas regras, acrescentou, retira-o do ar.


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