SÃO PAULO, SP - BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESSS) - Para a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva (Rede), o vandalismo golpista do último domingo (8) em Brasília está diretamente ligado aos quatro anos de aumento no desmatamento e de leniência com crimes ambientais.

Até agora, as investigações sobre a manifestação bolsonarista já identificaram elos, de financiamento ou logística, com setores do agronegócio contrários a Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Parte dessa turba enfurecida vem de práticas nos setores ligados a desmatamento, grilagem, tráfico de madeira, pesca ilegal, garimpo ilegal", diz Marina à Folha de S.Paulo.

Rosto de Marina sorrindo sobreposto a árvores, em tons de verde e bege

De volta ao cargo após quase 15 anos, ela defende retomar políticas de proteção ambiental, torná-las mais sólidas e conseguir construir, apesar desses setores conservadores, uma ação transversal para ao menos tentar cumprir o Acordo de Paris. "Vai ter constância [nas políticas]", define.

Para ela, incentivos, por meio de reforma tributária, podem convencer produtores rurais a cumprirem a legislação, o que não ocorreu na última gestão. "Você investe tudo para fazer sua propriedade ser certificada, aí entra um governo que acaba com tudo e você vai ter que concorrer com ilegais. Parece que você é o bobo da corte", afirma.

PERGUNTA - Há relação entre os organizadores dos atos golpistas do último domingo e os agentes de crimes ambientais ligados ao agronegócio da Amazônia?

MARINA SILVA - Quando assinou o decreto de intervenção federal na segurança do Distrito Federal, o presidente Lula muito corretamente fez uma correlação entre o que estava acontecendo em Brasília e as práticas ilegais da Amazônia.

Uma boa parte disso são aqueles que estão sendo investigados, que são estrategistas, financiadores, estimuladores, articuladores dessa barbaridade política em vários níveis. Mas uma boa parte era uma turba enfurecida daqueles que, durante o governo Bolsonaro, saíram da expectativa da impunidade que todo criminoso tem para a certeza da impunidade.

Parte dessa turba enfurecida vem de práticas nos setores ligados a desmatamento, grilagem, tráfico de madeira, pesca ilegal, garimpo ilegal. Obviamente, o cuidado que a gente tem que ter é de não fazer generalizações.

P.- A fiscalização ambiental deve encontrar mais resistência do que se previa?

MS- Não mudou a percepção. A gente teve certeza aqui do que a gente diagnosticou e do que a gente projetou como ação necessária.

Os elementos que nós tínhamos durante a transição já eram suficientemente fortes para sabermos o tamanho do problema que existe. Não entramos às cegas, mas, estando aqui dentro, a realidade é incomparavelmente pior.

Então, você tem que correr para não deixar prescrever o contrato com helicóptero, um monte de coisa, porque você tem o que foi destruído e tem o que foi armado para continuar não dando certo.

P.- Até que ponto é possível dialogar com o agronegócio, considerando que há setores dele que defendem propostas antiambientais?

MS- O diálogo é a possibilidade de convencer e de ser convencido. Não pressupõe uma imposição daquilo que não pode ser aceito do ponto de vista legal e das relações políticas civilizadas.

A academia, por exemplo, tem um momento em que ela não vai abrir mão. Ela diz: isso aqui é ciência. Tem que reduzir as emissões para equilibrar em 1,5°C [como teto do aquecimento global] e não adianta querer convencer o contrário, de que 2°C é possível. O diálogo é exatamente o respeito ao princípio da realidade. Há um momento em que a realidade se impõe.

Hoje temos um setor do agro que é incomparavelmente mais resistente, mas nós temos a experiência já aplicada das políticas públicas.

A novidade é que hoje nós temos também um setor relevante do agro comprometido com a agenda da sustentabilidade, que também é incomparavelmente maior e mais atuante do que nós tínhamos há 20 anos. Então temos uma boa base para trabalhar transversalmente o trilho dessa transição para uma agricultura de baixo carbono.

P.- Nessa transversalidade, a senhora precisará dialogar com o agro, mas também com ministros que até há pouco eram governadores em locais com alto índice de desmatamento e com políticas públicas lenientes?

MS- Foi o próprio presidente quem deu o termo de referência para nós, para o conjunto do governo, na questão do desmatamento. O presidente Lula é quem está liderando a agenda.

Liguei para o Carlos Fávaro [ministro da Agricultura] e já estamos trabalhando em um acordo de cooperação para materializar a questão da agenda ambiental e de desenvolvimento no setor agrícola. Porque o Brasil não pode pagar o preço dos criminosos. Nós estamos buscando todas as sinergias possíveis, inclusive com o setor produtivo.

P.- O Brasil conseguirá evitar o ponto de não retorno no desmatamento da Amazônia?

MS- Já estamos em torno de 19% a 20% de Amazônia destruída, já muito próximo do ponto de não retorno, que é ultrapassar os 20% até 25% de destruição. E isso é uma margem que você não pode arriscar. Tem que parar.

O compromisso assumido pelo Brasil é de desmatamento zero até 2030. Nós estamos correndo atrás de dar conta dessa meta, tendo um verdadeiro abismo de política ambiental durante quatro anos, né?

É um desafio imenso, não é mágica. Mas nós não vamos rebaixar a meta em função do abismo, vamos mantê-la. Se alcançarmos, será um feito enorme. Senão, queremos estar bem próximo dela.

Não tem espaço para o ilegal, o que não é correto, mas o desmatamento zero também é um convencimento. É preciso convencer o dono da terra de que a preservação da área de floresta é mais rentável, mais estratégica, do que usá-la para criar gado ou plantar, mesmo que dentro da lei.

P.- Como fazer esse convencimento?

MS- Há uma grande quantidade de pessoas que querem um caminho: vai ter suporte técnico, vai ter algum tipo de incentivo, vai ter constância. Porque, nessa sazonalidade, a gente caminhou por dez anos e olha o que aconteceu? A gente voltou para o zero.

Então você investe tudo para fazer sua propriedade ser certificada, aí entra um governo que acaba com tudo e você vai ter que concorrer com ilegais. Parece que você é o bobo da corte.

É preciso dos incentivos, nós vamos ter uma reforma tributária e nosso querido Fernando Haddad [ministro da Fazenda] tem uma compreensão fantástica.

Ao mesmo tempo, Mato Grosso já está tendo um retardamento na chuva de 27 dias. São prejuízos enormes do ponto de vista da safrinha, são prejuízos de bilhões para o agro.

Se entrar em ponto de não retorno, significa mudar completamente o regime de chuvas, então não compensa eu usar o que eu poderia usar [de um terreno] ao custo de acabar com a chuva de toda a minha propriedade. Então tem um processo complexo, mas já há uma compreensão muito grande.

P.- Em relação à geração de energia, qual sua avaliação sobre a exploração do petróleo na MS- Foz do Amazonas e sobre a construção de hidrelétricas na Amazônia?

Sobre a hidrelétrica, o próprio presidente Lula respondeu: hoje nós temos capacidade de resposta para o setor elétrico altamente eficiente. As energias solar e eólica já têm um custo menor do que a hidrelétrica ?custo financeiro e também social, ambiental. E nós temos uma energia que pode gerar mais energia, que é o hidrogênio verde, que o mundo pode comprar.

Sobre a Petrobras, há uma discussão de caminhar na direção de ser não apenas uma empresa de exploração de petróleo, mas uma empresa de energia, porque assim ela já vai fazendo a sua própria transição.

P.- Os R$ 3,3 bilhões hoje no Fundo Amazônia serão suficientes para complementar o orçamento do ministério, reduzido por Bolsonaro?

MS- Nós temos que pensar nesse uso emergencial do Fundo Amazônia e na forma como ele foi concebido. Não era para tirar o dinheiro para as ações que são de obrigação do Estado, né? O Fundo tem a ver com pesquisa, com apoio a projeto de comunidade, de empresas.

Agora, ele vai ter que ser usado muito fortemente e emergencialmente por causa desse apagão ambiental. A necessidade de captar esses recursos hoje é enorme.

Recebi uma ligação do John Kerry [enviado especial do clima dos Estados Unidos] e estamos vendo a possível vinda dele aqui para o Brasil. Insisto muito nessas conversas, porque uma das formas de nos ajudar com recursos financeiros são essas parcerias, acordos de cooperação. E o Fundo Amazônia é a prioridade.

Mas o objetivo estratégico é que o fundo possa ser ampliado e volte a ser usado para a bioeconomia, para a transição na área da agricultura, por exemplo, de pequenos agricultores para ações de desenvolvimento sustentável.

P.- Por que houve demora na sua nomeação e no anúncio dos nomes da sua equipe?

MS- A ordem de quem veio primeiro não é a questão, a questão é a prioridade que o presidente está dando à agenda.

Na escolha dos secretários, a demora é porque as pessoas têm suas vidas. Os interinos foram nomeados porque não posso parar [nesta quinta, 12, foram nomeados interinos para Ibama e ICMBio]. Logo vocês vão ter o presidente do Ibama nomeado, bonitinho. Já temos nomes decididos, só não anunciados.

RAIO-X

Marina Silva, 64

Nasceu no Seringal Bagaço, em Rio Branco (AC). Formada em história pela Universidade Federal do Acre, foi líder sindical ao lado do ambientalista e seringueiro Chico Mendes. Atual ministra do Meio Ambiente, cargo que já havia assumido entre 2003 e 2008, foi senadora de 1995 a 2011 e se candidatou à Presidência da República em três campanhas (2010, 2014 e 2018). No último pleito, foi eleita deputada federal pela Rede-SP, partido que fundou em 2013.


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